Se pudésse escolher a profissão que o apaixona, então Miguel Oliveira escolheria a música. Ele tem uma paixão pela música tradicional e popular, para a qual contribuem não só a beleza das composições e das sonoridades portuguesas, celtas, bretãs ou galegas, mas também o fascínio pela própria história e manufacturação dos instrumentos. Para já não passa de uma ocupação paralela à sua verdadeira actividade - designer gráfico -, mas é a ela que pretende dedicar o seu trabalho e caminhar gradualmente para a profissionalização. O gosto pela música tradicional e popular surgiu quando ainda era pequeno, ouvindo a avó, uma minhota, executar instrumentos como a rabeca, o bombo ou os ferrinhos. A vontade de aprender leva-o a copiar-lhe os gestos, num primeiro contacto com algo que se viria a revelar um contínuo processo de descoberta. Alguns anos mais tarde conhece uns amigos que viriam a cativá-lo decisivamente para a música. Além de disporem de uma discografia que lhe permitiu alargar o conhecimento de novos sons, alguns deles possuíam igualmente experiência a nível instrumental e proporcionaram-lhe a oportunidade de aprender e praticar. O primeiro instrumento que começou a tocar regularmente, já com outro grupo de amigos, foi o bombo. Há quatro anos, dois outros convidaram-no para integrar a secção de percussão de um espectáculo a realizar, daí a um mês, em Viseu. Foi apenas o início. 'Tornou-se difícil coordenar-nos porque éramos dezassete pessoas e só algumas tinham bons conhecimentos de música tradicional. Mas acabou por correr tudo bem. E o que pensei ser uma experiência fugaz, afinal teve continuação', conta. Pouco tempo depois o palco era a feira de artesanato de Gondomar, pelo que a partir dessa altura começaram a ensaiar duas vezes por semana e a encarar as actuações mais seriamente. Imbuído da mesma curiosidade que o levara a começar, Miguel Oliveira decidiu-se a aprender outros instrumentos, como o cavaquinho, cuja iniciação não considera difícil. 'O mais complicado vem depois, quando queremos evoluir para composições mais rebuscadas e variar os tons. É um trabalho que requer paciência e alguma dose de imaginação, mas extremamente interessante'. Depois vieram a gaita de foles, a requinta ( flauta transversal), a ocarina (pequena flauta de barro), as flautas de lata, entre outros. Mas se tornar-se num bom executante é, já de si, um exercício de persistência, no caso destes músicos esse esforço tem de ser redobrado. Particularmente em Portugal, onde ainda não existe um circuito regular de concertos e as editoras discográficas apostam pouco. Desta forma, comenta, 'torna-se muito difícil divulgar a música tradicional junto do grande público e ficar a conhecer o que outros grupos fazem. A troca de experiências chega a ser tão limitada que muitos se encaram praticamente como concorrentes', explica Algumas iniciativas escassas, das quais o melhor exemplo será, porventura, o Festival Intercéltico do Porto, vão pontuando o panorama nacional, mas longe ainda de atingir o destaque concedido noutras paragens. Em países como Inglaterra ou Espanha, nomeadamente, são muitas as bandas que têm as agendas de espectáculos preenchidas durante a maior parte do ano, permitindo-lhes fazer um trabalho profissional e, ao mesmo tempo, monetariamente compensador. Não será por acaso que, aqui ao lado, na Galiza, a gaita de foles seja o instrumento mais popular do território e existam milhares de praticamente distribuídos por centenas de agremiações. Outro exemplo da interioridade portuguesa neste domínio são as revistas especializadas na 'world-music' e no 'folk', importadas na totalidade do estrangeiro, onde se divulgam nomes, projectos e se fornecem contactos com fabricantes de instrumentos musicais. Sem um espaço como esse, diz Miguel, 'não é possível fortalecer o meio musical nacional e promover a construção de instrumentos de qualidade. E são poucos os que aqui o fazem. Para além de um artesão violeiro de Coimbra, Fernando Meireles, que os constrói com particular cuidado, há uma nova vaga de construtores ainda muito jovens, orientados pelo mestre Toni, na Fundação para o Desenvolvimento da Zona Histórica da Sé, no Porto, que tentam recuperar as tradições e as técnicas de afinação'. Quanto mais não seja, a divulgação torna-se importante porque contribui para preservar instrumentos caídos em desuso e renovar, de alguma maneira, os formatos da música tradicional. Ao longo do tempo, afirma, 'as pessoas não se preocuparam em explorar as potencialidades dos instrumentos e as composições foram-se mantendo com base em acordes simples. No folclore, por exemplo, a introdução do acordeão, ao contrário do que talvez se pretendesse, veio destruir as riquezas rítmicas da música, nomeadamente a dos cordofones (como o violino, a rabeca chuleira, os cavaquinhos ou os bandolins), porque se sobrepõe ao som de conjunto, explica, conseguindo abafar todo o resto'. O que vai valendo é o facto da concertina, um elemento mais talhado para fazer a vez do acordeão, ser cada vez mais procurado. 'É essa forma de música que nós procuramos fazer, recuperando instrumentos e melodias esquecidas e dizendo que é possível levar a cabo projectos de música contemporânea suportados nesses meios'. Ao mesmo tempo, recolhem-se textos e cantares que já só praticamente existem na memória de algumas pessoas. Um trabalho de campo que, apesar de algumas vezes se revelar infrutífero (a memória falha ou a vergonha não permite), se torna gratificante pelo contacto pessoal. Outro dos aspectos igualmente importante passa por mostrar às pessoas que existe uma distinção entre a música tradicional popular e a música que é tocada pelos ranchos folclóricos. Segundo nos explica, 'existe uma tendência generalizada para confundir os dois géneros como sendo uma e a mesma coisa, afastando-se, dessa maneira, um potencial número de ouvintes'. Não pretendendo diminuir o valor etnográfico dos ranchos folclóricos, e sabendo mesmo que ambas as expressões provêm das mesmas raízes, ele afirma que 'existe uma distinção muita clara, seja pela variação dos timbres rítmicos como pela origem das composições, retiradas do cancioneiro popular português e da recolha oral, ou simplesmente por acolher elementos de origens mais distantes, como a Bretanha, a Irlanda, as Astúrias ou a Galiza. Apesar dos espectáculos se terem vindo a suceder um pouco por todo o lado, incluindo a Galiza, nem sempre as coisas correm de feição à banda. É que algumas câmaras e instituições 'esquecem-se', por vezes, de efectuar o pagamento. 'E, pelo que sabemos, não nos acontece só a nós', lamenta. Uma situação caricata, mas bem demonstrativa da ainda fraca apreciação pelo trabalho de recolha e inovação desenvolvido por estes grupos.
RC Ricardo Jorge Costa
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