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A Educação numa Plataforma de Economia Solidária

Muito se tem denunciado os efeitos da globalização económica e política, mas é importante destacar que a hegemonia e a dominação acontecem também no campo cultural. Os interesses transnacionais se manifestam tanto em seus aspectos económicos quanto em seus aspectos culturais. A informação que circula no mundo hoje é cada vez mais hegemonizada pelos interesses de grupos transnacionais que actuam no sentido de formar/deformar consciências submissas aos valores neoliberais que necessitam o consenso em torno do individualismo, da competição, do consumismo, indispensáveis ao sucesso de um projecto que se apresenta como 'única alternativa' no mundo contemporâneo. A televisão, a música, a dança, o cinema, a pintura, a moda, a indústria editorial, a propaganda se tornam mais e mais reprodutoras do que é gerado nos países centrais, a chamada Metrópole dos tempos coloniais, seja no conteúdo, seja na forma. Frequentemente, o que se apresenta como produção nacional nada mais é do que a mimetização do que, na verdade, foi criado fora e simplesmente importado, sem sequer ter sido traduzido, pois cada vez mais a 'língua oficial' vai se tornando o inglês. Isto é tão forte que um conhecido jornalista brasileiro chegou a afirmar que o conceito de analfabeto havia mudado, uma vez que, hoje, 'ser analfabeto é não saber inglês'. A linguagem do computador é o inglês, a linguagem da economia é o inglês, a linguagem do ténis (tão em moda desde o sucesso do Guga) é o inglês, a linguagem da propaganda é o inglês, o chamado cinema nacional vai-se dizendo na busca do mercado internacional e se tornando assim um cinema americano de má qualidade. Os discos são gravados fora, os filmes são gravados fora, os livros são produzidos fora e, sob a justificativa, talvez verdadeira, de que a qualidade americana é melhor do que a brasileira e que o custo é mais baixo do que no Brasil, nossos artistas vão contribuindo para acabar com a incipiente industria nacional. Neste final de século, em qualquer lugarejo da América Latina, os jovens se vestem como os jovens novaiorquinos ou europeus, ouvem as mesmas músicas, vêem os mesmos filmes, assistem os mesmos programas de televisão, recebem as mesmas informações, têm os mesmos hábitos, incorporam em sua linguagem cotidiana palavras que muitas vezes não compreendem sequer o sentido, fazem a propaganda em suas camisetas ou calças jeans das mesmas marcas e da mesma ideologia. Muitos 'amam Nova York', sem jamais a terem conhecido e sem saberem o que afinal significa aquela grande maçã vermelha que carregam pelas ruas em seus corpos.

Tudo isto faz parte do processo de 'alfabetização' para que se tornem 'modernos'. A vida comunitária vai se transformando no estilo de vida narcísico pós-moderno, em que homens e mulheres vão perdendo a sua identidade nacional, local e familiar, sem chegarem a adquirir a desejada identidade cosmopolita. Rejeitando a identidade que vão sendo ensinados a desprezar, por anacrónica, condenam-se, ou melhor, são condenados aos frágeis elos de pertencimento a uma civilização cibernética global, incorporando um estilo de vida e padrões de consumo das minorias burguesas internacionais, das quais só se aproximam em suas fantasias e em sua negação de si mesmos. Afastam-se mais e mais das sábias palavras de José Marti, de que: 'A su pueblo ha de ser fiel, porque de su pueblo recibe las condiciones con que brilla. Y el que de su pueblo reniegue, de las proprias alas, de su cerebro y entrañas de su entendimiento sea, como um ladrón, privado.' O terrível sentimento de negação de si mesmo, de sua cultura, de seus valores, de sua nacionalidade é indispensável para o processo de globalização. No entanto, a afirmação de sua própria cultura, de seus próprios valores, de sua nacionalidade, a fidelidade a seu povo, conforme Marti, seriam indispensáveis para a construção de um projecto emancipatório. A mimetização do dominador vai homogeneizando o mundo, fazendo de todos consumidores em potencial, rompendo laços de pertencimento na medida em que todos passam a competir com todos, ainda que tenham sido um dia companheiros ou mesmo
irmãos. As pessoas saem das ruas onde conviviam com a comunidade e se refugiam nos shopping centers, ícones do consumo, onde, se não podem comprar, se satisfazem em consumir com os olhos. O convívio familiar vai sendo substituído pela televisão, que traz o mundo para dentro de cada casa, embora impeça que este mundo seja pensado, compreendido, criticado. O mesmo noticiário que apresenta o massacre de populações no Terceiro Mundo anuncia a passagem de um cometa, comenta a última roubalheira dos políticos, mostra as bundas das mulatas no carnaval do Rio de Janeiro. O apresentador não muda sequer a sua expressão facial ou a entonação de sua voz quando veicula a notícia da miséria ou da luxúria, dos massacres das classes populares ou dos que lutam pela liberdade, dos grandes 'acontecimentos' do mundo da moda ou do descaso do chamado Mundo Civilizado em relação à miséria de populações na África ou na América Latina, do nascimento de um boto no Zoológico de Londres ou do buraco de ozónio que ameaça a sobrevivência do planeta Terra, da implosão de um prédio numa grande metrópole para ser substituído por outra construção mais moderna ou o problema do desemprego no mundo. As notícias são rápidas, superficiais, fragmentadas, alternando coisas sérias com frivolidades, naturalizando o que deveria provocar a reflexão e a revolta. É preciso produzir o que Noam Chomsky denomina the making os consent. Para isto é necessário distrair o povo, e não, educá-lo.

Houve tempo em que ao povo era dado pão e circo. Hoje basta oferecer televisão e deixá-lo devanear, alienando-se de sua própria existência miserável, tornando-se impotente para reagir ao processo de dominação e exploração do qual é vítima. As pesquisas nos mostram que, nas zonas mais pobres da América Latina, há um número muito maior de aparelhos de televisão do que de telefones. Nada surpreendente, pois é mais interessante para o establishment que o povo se informe (a informação que convém aos que detêm o poder, naturalmente) do que se comunique (o que poderia contribuir para a sua organização e potencialização para a luta emancipatória). O processo de globalização se dá, portanto, não apenas através do domínio económico e político, mas, fortemente, pela penetração cultural, onde se situa o papel da escola, enquanto elemento de consolidação da hegemonia. Face a esta situação, a pergunta que se coloca é - para que escola, se as populações estão sendo 'educadas' pela televisão? E uma segunda, embora não menos importante questão - por que interesses divergentes produzem o mesmo discurso da importância da escola, seja em seus reflexos nas vidas de cada pessoa, seja no que se refere à sociedade da qual cada pessoa é parte? Será que o proclamado valor da escola tem o mesmo significado para os que exploram e para os que são explorados? O discurso da modernidade vem sendo insistentemente acompanhado pelo discurso da valorização da educação. A educação seria conditio sine qua non para que os países do Terceiro Mundo possam sair do subdesenvolvimento. Desenvolvimento humano sustentável e melhoramento do capital humano tornam-se palavras de ordem que, partindo do Banco Mundial, são incorporadas ao discurso oficial e ao discurso empresarial, divulgadas pelas mass media, chegando às escolas, onde são defendidas pelos professores e professoras 'modernos'. Estes professores e professoras não sabem que uma das mais enfáticas recomendações do Banco Mundial é de uma profunda reforma do sistema docente na América Latina, que, sem dúvida, os penalizará. As universidades latino-americanas já sentem na carne o que significa esta reforma do sistema docente, com a perda de seus recursos económicos nos últimos anos. Hoje, um professor universitário argentino, por exemplo, no ápice de sua carreira, com o título de doutor, recebe quinhentos dólares por mês, menos do que um operário sem qualificação nos Estados Unidos. Hoje, uma professora brasileira de escola fundamental recebe por hora de trabalho menos de três dólares e, em muitas regiões, o seu salário mensal é menor do que o salário mínimo oficial.
No entanto, as escolas latino-americanas estão sendo informatizadas, equipadas com televisores e vídeos, e começam a receber kits pedagógicos comprados de empresas transnacionais ou dos grandes conglomerados nacionais como a fundação Roberto Marinho ou a Fundação Victor Civitas no Brasil. Ted Turner da CNN veio ao Brasil com sua bela e outrora progressista mulher, Jane Fonda, seus cachorros de estimação e seus guarda-costas, para cobrar o seu quinhão. Ele sabe o montante que está sendo gasto para 'modernizar' as escolas brasileiras. Já correm como piadas de mau gosto, embora algumas vezes os noticiários televisivos mostrem (talvez por descuido, talvez por interesses contrariados) não ser piada, mas realidade, o que vem acontecendo nas escolas brasileiras com a chegada da 'modernidade'. Há escolas no Brasil que recebem computadores sem que os professores e professoras tivessem recebido o treinamento para utilizá-los, escolas que deveriam entrar na Internet mas que não possuem telefone, escolas que recebem toda a parafernália e não têm sequer onde colocar o 'presente'. Todavia quando a crise se manifesta, o discurso de prioridade por educação se mostra com suas verdadeiras garras. Foi o que se viu no México com a crise de Dezembro de 1994. O economista-chefe do Banco Mundial para o México foi mudando o seu discurso, revelando a sua verdadeira prioridade - o pagamento da dívida externa voltou a ser a prioridade maior, postergando as questões do meio ambiente e da educação. Uma coisa é clara: o projecto educativo proposto, seja pelo Banco Mundial, seja pelos governos neoliberais e pelas classes empresariais latino-americanas, se pauta na afirmação da educação como um dos factores efectivos do progresso e crescimento dos países e que, portanto, deveria estar afinado com as demandas económicas, sociais, políticas e culturais. Só assim estes países teriam condições de atingir os desejados níveis de produção e competitividade internacional. Os teóricos deste enfoque, que se pauta na teoria do capital humano, chegaram a considerar que o problema do desemprego nos países subdesenvolvidos seria responsabilidade deles próprios já que, pelo facto de sua população não atingir os altos níveis de escolaridade requeridos, os capitais se deslocariam para outros países, onde os níveis de escolaridade fossem mais favoráveis, lá gerando novos empregos. Para estes teóricos, gastos em educação são inversão de capital e factor de equidade e de desenvolvimento. É correcto, sem dúvida, afirmar que a educação seja um factor de mobilidade social individual e grupal (a bem dizer, de uns poucos) na América Latina, mas carece de fundamento defender a educação como alavanca para o desenvolvimento colectivo de uma sociedade.

É interessante notar que apesar dos discursos, em que o Banco Mundial exalta o valor da educação e afirma orgulhoso haver apoiado a educação no continente nos últimos vinte anos e estar preparado para ajudar na superação das dificuldades que enfrenta a América Latina em seu desenvolvimento educativo, os índices de analfabetismo continuam dos mais altos do mundo (cerca de 42,5 milhões de adultos na América Latina não sabem ler ou escrever), o acesso à universidade continua limitado para a classe trabalhadora, para os negros, indígenas e mestiços, e no caso do Brasil, a escolaridade média de um trabalhador continua a ser de três anos e meio. É insignificante o número de negros e indígenas que entram na escola, nela têm sucesso e dela saem com um título universitário.

Regina Leite Garcia - Professora Titular em Alfabetização na Universidade Federal Fluminense.

Nota: Este texto será completado com uma II Parte ('Impasses da Educação Na América Latina'), a publicar na edição de Fevereiro e uma III Parte ('Um Projecto Educacional Emancipatório Para a América Latina'), a publicar na edição de Março.
À Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) e à Revista PROPOSTA agradecemos a disponibilidade na permuta de textos.


  
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Edição:

N.º 64
Ano 7, Janeiro 1998

Autoria:

Regina Leite Garcia
Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil
Regina Leite Garcia
Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil

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