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Diário vianense

Se o meu sangue não me engana / como engana a fantasia / havemos de ir a Viana / ó meu amor de algum dia… (Pedro Homem de Mello)

Fiz nestas páginas, há já algum tempo, uma promessa, e tenho para mim que as promessas, mesmo que levianas (não é o caso), devem ser cumpridas, sob pena de ficarmos mal com nós próprios e com os outros. Essa promessa, que, como disse, não é leviana, é no entanto muito exigente, porque me obriga a regressar ao meu passado (remoto), quando calcorreava, sem preocupações de maior, as ruas da minha cidade – Viana do Castelo.
É verdade que já aqui falei das festas da Senhora da Agonia, mas isso apenas implicava um breve recuo temporal, já que todos os anos, religiosamente (com a minha espiritualidade muito própria: os zés pereiras), me apresento na Praça da República e pelas bandas do Largo de S. Domingos. E podemos, precisamente, começar por estes dois marcos geográficos e simbólicos.
Despachado de Covas, Vila Nova de Cerveira, pelos senhores meus pais, para Viana do Castelo, onde deveria frequentar o liceu, tive uma primeira e breve estada em casa amiga à frente da entrada principal desse curioso estabelecimento de ensino com duas alas, uma masculina e outra feminina (se bem me lembro, só havia duas turmas mistas no 6º e no 7º anos, privilégio de que não pude usufruir por me encontrar nesses anos já no Liceu Gil Vicente, em Lisboa), onde, na parte coberta mas aberta, os mais ágeis e hábeis se escondiam, deixando os outros suar as estopinhas quando o professor Aires (o Airinhos) mandava dar 10 voltas aos terrenos liceais.

Primeiros escudos. Depois fiquei instalado em casa da senhora D. Maria Luz, professora do Magistério Primário aposentada, que me fazia estudar e me deu a ganhar os meus primeiros (saudosos) escudos, com umas incipientes explicações de Língua Inglesa. Essa bela residência estava – e está, mas não sei a quem pertence agora – no cruzamento das ruas Góis Pinto e Monsenhor Daniel Machado, muito perto da Casa de Santa Zita.
Daí saía todos os dias de semana para o liceu, tendo de passar pelo Largo de S. Domingos (com o célebre Café Camelo: “Estás a ver, meu filho, toda a gente nos conhece quando vou a conduzir”, dizia o proprietário, a acreditar na lenda), calcorrear a Rua Manuel Espregueira, atravessar a Praça da República (com os vetustos edifícios da Misericórdia e dos antigos Paços do Concelho, todos do século XVI, a enquadrarem o belo chafariz), continuar pela Rua da Bandeira, ainda com a passagem de nível, até cortar à esquerda para chegar ao meu destino.
Aulas toda a manhã: Francês, Inglês, Matemática, Português e Ciências, são as disciplinas de que me recordo melhor, sempre por causa dos (excelentes) professores ou, no caso da última, devido à odiosa imposição de fazer um herbário – só me vinham à ideia urtigas… Desses mestres cujas qualidades ainda hoje recordo, só me lembro de alguns nomes e alcunhas: de Português, o Vírgulas, célebre por ser brutalmente exigente em matéria de pontuação; de Inglês, o Fininho, com quem aprendi que em Inglês se escreve
Constantinopla e se lê Istambul; de Francês, a Dra. Ana, que me fazia ir ao quadro sem me dar tempo de descer as perneiras das calças que tinha puxado para cima para evitar ficar com marcas nos joelhos, como instruído por minha mãe; de Matemática, o Dr. Alexandre Rodrigues, expulso da Marinha pelo regime salazarista, republicano convicto e amigo de meu pai.

Memória felliniana. Essas caminhadas – o regresso era antes do almoço, porque raramente havia aulas de tarde – solicitavam desvios que me permitiam conhecer cada vez melhor as especificidades da cidade, simultaneamente aristocrática, burguesa e operária, tolerante, acolhedora (veja-se como sempre soube receber os habitantes das aldeias do distrito), cheia de encantos monumentais, de ruelas esconsas (a famosa Viela dos Seitais, onde fica a casa de Miguel de Vasconcelos, iberista avant-la-lettre), de situações especiais: ir ver o “Robin dos Bosques” a preto e branco, na televisão do salão dos bombeiros, ao lado do Teatro Sá de Miranda, que, segundo creio, pertenceu à família Feijó; subir a pé ou no elevador até Santa Luzia, para perscrutar o mar e o rio, quer chovesse quer fizesse sol; a saída aos sábados à tarde/ noite, passada no velho Límia Parque, a jogar bilhar, que vá lá saber-se porquê chamávamos russo, e a ouvir “Riders in the Sky”, versão The Shadows, na jukebox, enquanto durassem as moedas.
E o rio ali ao lado, a chuva a bater, persistente, nas janelas que davam para o rinque onde jogava hóquei o Vianense (Natário, que jogador!), em camaradagem com o Galeão, o Pessanha, os irmãos e primos Santos, o rapaz que vinha de Darque de bicicleta…
Fantasmas, agora, que todavia ainda povoam as minhas recordações juvenis.
E a primeira rapariga a quem acariciei os seios: Margarida.
Perpassa por aqui uma atmosfera felliniana (muitas memórias pessoais e pouca cidade), é verdade, mas é assim que vale a pena recordar.

Salvato Teles de Menezes  


  
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Edição:

Edição N.º 202, série II
Inverno 2013

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