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A vertical e a horizontal

Ainda hoje me recordo daquela aula. Passaram cerca de dez anos. Eu era um miúdo de 11 anos e, como os meus colegas, nem sempre percebia muitas das coisas que os professores diziam.
Ainda hoje nos acontece o mesmo, até na faculdade, mas aquela aula costumava ser diferente das outras. Havia dois professores, trabalhavam connosco em grupo, sentavam-se junto das nossas bancas de trabalho, falávamos sobre o que íamos fazer e sobre o que aprenderíamos com isso. Às vezes, falávamos muito, entusiasmados, empolgados, enquanto trabalhávamos e o professor dizia:
– Então, esse barulho? Sei que é um barulho bom, porque é de trabalho, mas tentem falar mais baixo porque já estou muito velhinho e isso cansa.
– Que idade tem professor?
– Cento e dois anos…
Ríamo-nos, sabíamos que ria connosco e não de nós.
Nas aulas estávamos sempre a descobrir como e porquê as coisas funcionavam, a construir objetos, a conhecer regras da Física, mesmo sem lhe chamarmos assim. Um dia, a professora estava a explicar-nos o que era horizontal e vertical e disse:
– O fio de prumo é a vertical, e cai, perpendicular, sobre as águas em repouso, que são a horizontal.
A verdade é que não percebemos nada daquilo, mas ficámos calados.
Estávamos todos muito habituados a aulas de outras disciplinas, em que não percebíamos muita coisa, mas onde não havia tempo nem espaço para perguntar. Além disso, nenhum gostava de mostrar o seu desconhecimento. Talvez a seguir se voltasse a falar mais e percebêssemos melhor. Afinal, naquelas aulas, sempre que se falava de alguma coisa, isso conduzia-nos a algum lado: um desafio, uma proposta, uma ideia e um projeto a concretizar.
Mesmo certas definições que pareciam mais estranhas e quase misteriosas eram-nos depois explicadas com exemplos práticos e muito simples. Por exemplo, porque é que uma folha de papel apoiada sobre dois cilindros, não tinha qualquer resistência, mas depois de dobrada em pregas, podia aguentar com uma caneta em cima. E daqui partíamos para conceitos de estruturas e indicações imprescindíveis para algumas construções.
Mas, daquela vez ficámos mesmos calados e sem perceber. Foi então que o professor, depois de falar baixo com a professora, com os olhos a rir, perguntou:
– Quem sabe o que é o fio de prumo e as águas em repouso?
Ninguém respondeu.
– Então, na próxima aula vamos ver isso.

Na aula seguinte, perplexos e curiosos, aproximámo-nos da mesa grande, no centro da sala, onde estava uma grande taça de plástico transparente, com água até meio, e uma coisa que nunca tínhamos visto: um fio enrolado e um pedaço de chumbo.
Parecia-nos um peso da pesca.
Os professores pediram que nos aproximássemos e ficámos em círculo à volta da mesa, expectantes, acotovelando-nos uns aos outros, sem percebermos o que ia acontecer. O professor mostrou-nos a água na taça transparente e disse:
– Estão a ver a superfície da água? É a linha das águas em repouso
– mantém-se sempre na mesma posição, que é a horizontal.
Inclinou a taça, um pouco mais, e um pouco mais ainda, e a linha da água continuava na horizontal. Depois pegou no fio que tinha ao lado, com um peso na ponta (disse depois que era aquilo o fio de prumo), e deixou-o suspenso, em perpendicular, sobre a linha de água.
– E esta é a vertical.
– É isso?
– É isto!
Então percebemos como era simples aquilo que nos tinha parecido tão estranho e hermético: o fio de prumo sobre as águas em repouso. Era tão simples que eu me ri, e depois de mim todos se riram também.
Foi a seguir que ficámos a saber, também, para quê e onde se usava o fio de prumo. Ficámos a saber, mas a saber sentindo.

Angelina Carvalho


  
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Edição:

Edição N.º 201, série II
Outono 2013

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