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Do nexo biológico ao vínculo do amor

Quando lerem estas palavras já se acabou o verão. No momento em que escrevo, começam os dias de mar, de sol, de tempo para ler os livros, de se pensar nos projetos para o próximo ano letivo e para o próximo inverno. Nos dias que correm, é altura também de se definirem planos e estabelecerem opções para se viver com salários (re)cortados, ou sem salário e sem apoio social. São assim, os dias do nosso enorme descontentamento...
O verão é também o período do cinema ao ar livre, gratuito, promovido pelo Cineclube de Guimarães, em pleno largo da Oliveira, nesse querido mês de agosto. Em noites quentes, e em noites menos quentes, assisti a alguns dos filmes que não pude ver ao longo do ano anterior e revi alguns outros dos preferidos, que desejava reencontrar. Recordo por exemplo a exibição de Buena Vista Social Club, transferida por causa da chuva para o salão paroquial, uma espécie de prolongamento das salas onde se ensaiam e interpretam as músicas do filme de Wim Wenders. Foi igualmente um privilégio ver Cinema Paraíso ao luar, inebriados pela magia do cinema, tal como os espetadores que são simultaneamente atores no filme.
Numa das sessões do verão de 2012 tive a oportunidade de ver O miúdo da bicicleta, dos irmãos Jean Pierre e Luc Dardenne.
O filme conta a história, ou melhor, mostra-nos a vida de Cyril, um rapaz de 11 anos, abandonado pelo pai, que vive numa instituição de acolhimento. A criança faz a negação da realidade e recusa-se a acreditar que o pai não a quer consigo. O seu objetivo, obsessivo, é reencontrar o pai, e faz tudo o que está dentro das suas possibilidades para o alcançar. Freud explicou que a indiferença é pior do que o ódio, e é a indiferença que espera Cyril no momento do reencontro.
Na sua busca desesperada, o rapaz cruza-se com Samantha, uma cabeleireira que o acolhe aos fins de semana e que se torna, mais tarde, a sua família de acolhimento. É Samantha que o ajuda a encontrar o pai e é Samantha que o acolhe, que o recebe nos seus braços, numa cena avassaladora, quando finalmente o pai lhe diz que não o quer na sua vida e ele tenta magoar -se. Ela é a única pessoa que está disposta a fazer todas as coisas de que Cyril necessita para se conter e para sobreviver.
A vinculação, ou attachment, assenta na interação da criança com o seu ambiente, com o seu cuidador principal, com a sua família ou com outras pessoas.
Se a família falha, como no caso de Cyril, é essencial encontrar alguém que assuma esse papel e com ela construa um attachment irracional, nas palavras de U. Bronfenbrenner. Segundo este autor, existe um termo menos pejorativo para attachment irracional, e o mais comum é amor.
Essa abertura incondicional, essa generosidade total, manifesta-se no comportamento de Samantha quando acolhe Cyril e passa a viver com ele, depois de ele ter cometido um assalto violento. E esse é um turning point, para usar a expressão de R. Gilligan, o momento decisivo em que Cyril é apoiado e pode seguir em frente ou esse apoio lhe é negado, restando-lhe muito provavelmente uma longa espiral descendente em direção à exclusão.
Porque as crianças que nunca experimentaram nenhuma forma de attachment são as que mais prejuízos sofreram e sofrem no desenvolvimento (D. Howe), e numa instituição de acolhimento as possibilidades de vinculação são muito reduzidas ou inexistentes.
Segundo J. Sáez, este filme é a representação de vidas que procuram sair de uma situação. Agora, que se aproxima o inverno, temos a obrigação coletiva de fazer o necessário para que o feliz encontro de crianças e jovens com uma hipótese de futuro, como Cyril, não seja um golpe de sorte. Para que tenham a possibilidade, nos próximos verões, de viver o mar, de sentir o sol, de ler e de ver bom cinema.

Paulo Delgado


  
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Edição:

Edição N.º 201, série II
Outono 2013

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