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Pedagogias críticas sem redencionismo

Os resultados concretos da educação escolar, entendidos através da experiência da relação pedagógica entre professores e alunos, não podem ser reduzidos a termos absolutos e universais de falência completa ou sucesso total. Educadores orientados pelos objetivos de justiça educacional e social são o contrário dos todo-poderosos ‘professores-heróis’ ou dos ‘superprofessores conscientes críticos’, que sabem tudo, podem tudo e de nada reclamam.

Embora seja impossível quantificar ou mesmo qualificar a influência das pedagogias críticas, seria difícil negar que, como movimento coletivo, ela produziu uma das mais dinâmicas e polêmicas escolas de pensamento educativo do século XX. Entretanto, é igualmente difícil negar que nos cursos de formação docente muitos/as estudantes reagem às propostas das pedagogias críticas com grande ceticismo e desespero.
Em nossa experiência, muitas destas reações de resistência estão relacionadas não tanto aos ideais de transformação, equidade, igualdade e de direitos democráticos das pedagogias críticas, mas na apresentação – nem sempre consciente – desses ideais dentro de estruturas narrativas redentoras. Nessa perspectiva redentora se argumenta a favor das mudanças de maneira quase esquizofrênica, na medida em que as escolas, tal como estão agora, são “péssimas” porque estão sujeitas a condições quase monstruosas. Essas condições, embora ruins, poderiam vir a ser “muito melhores” a partir de processos de conscientização. A transformação do presente infame para um futuro promissor é possível através da figura do grande herói pedagógico: o/a superprofessor/a.
As narrativas redentoras funcionam quando um professor individual supera todos os fracassos sistêmicos através da força tênue de sua consciência e de seus feitos heróicos e “orgânicos”. Uma das principais tarefas dos superprofessores é resgatar os futuros professores das garras malvadas das esperanças ingênuas, das armadilhas do neoliberalismo, do sexismo, do racismo e de tantas outras dinâmicas opressoras. Quando outros seguem o superprofessor, a sala de aula, ou a escola como um sistema mais amplo, são resgatadas. Esse processo segue a tradição dos relatos bíblicos, com a conhecida seqüência de pecado-crise-fracasso-trauma e finaliza com os mitos arquetípicos de redenção-absolvição-sucesso-recuperação. Se reconhecida e aceita, a visão redentora irá, após a derrota do inimigo, criar a escola ideal, na qual o professor perfeito e o aluno modelo irão aprender em harmonia, separados do caos do sistema educacional e social circundante.
Nos cursos de formação docente, a narrativa redentora articula as intensas e ácidas críticas usadas para denunciar as escolas “realmente existentes”, que, de maneira dualista, são responsabilizadas por quase todos os problemas e, simultaneamente, são o último espaço da esperança de melhora social. Nessa junção crítica do imaginário sobre os professores, estes se tornam os criadores de presentes terríveis e de futuros esperançosos.
Além disso, a narrativa redentora também contribui para a supervalorização de posições pessimistas como símbolo de uma suposta atitude crítica. Para muitos educadores, há um sentimento de que as pedagogias críticas podem ser um empreendimento autoderrotado, em parte decorrente de suas “hipóteses racionalistas” e das dificuldades em analisar desequilíbrios de poder entre pedagogos críticos e seus alunos. A crítica às escolas públicas e aos nossos próprios papéis como educadores é essencial, mas ela pode se tornar debilitante, acreditamos, se for fundamentada por uma visão de esperança estruturada como uma narrativa redentora.
Uma característica notável das narrativas redentoras é a apresentação normativa dos conflitos e lutas como expressões de esperança, em conexão com a mudança educacional e social. Ainda assim, apenas dentro da mitologia redentora de professores e alunos heróicos é possível encontrar “esperança” inerente às lutas contra  o racismo, a pobreza, a discriminação e outros conflitos, porque para tal é preciso sempre minimizar ou ignorar os riscos da vida real e o sofrimento associado a estas lutas.
Não vemos “conexão natural” entre luta e esperança ou mesmo entre escolaridade e esperança. Nossa posição é reconhecer que os conflitos e as lutas fazem parte da vida diária das escolas e sociedades – às vezes explícitos e claros, às vezes implícitos e confusos –, mas sempre ancorados em formas complexas e expressando uma múltipla dinâmica de classe, raça, sexualidade, linguagem e etnia, além de outras. É pelo entendimento de que os conflitos educacionais são inevitáveis que as pedagogias críticas “devem falar de esperança, desde que isto não signifique suprimir a natureza do perigo” [Raymond Williams, «Resources of hope»].
O que desejamos afirmar é que os resultados concretos da educação escolar, entendidos através da experiência da relação pedagógica entre professores e alunos, não podem ser reduzidos a termos absolutos e universais de falência completa ou sucesso total. Para inúmeros professores, o acesso aos resultados de nossas intervenções pedagógicas é limitado pelas relações conflituosas e pelos modos através dos quais cada um de nós, como membros de grupos sociais múltiplos e específicos, reconhece, percebe, acredita e age sobre realidades complexas e contraditórias. Essa “irredutibilidade vivida” da maioria dos processos educacionais confronta professores e alunos com tensões inevitáveis. Educadores orientados pelos objetivos de justiça educacional e social são o contrário dos todo-poderosos “professores-heróis” ou dos “superprofessores conscientes críticos”, que sabem tudo, podem tudo, e de nada reclamam.
Ter esperanças em um futuro melhor e mais justo para nossas escolas e sociedades não é uma atitude problemática per se. Entretanto, noções de esperança que se estruturam em uma narrativa redentora e de heroísmo individual do superprofessor é uma esperança sem efeito. Nossas salas de aula devem oferecer não apenas uma análise teórica consistente, fundamentada por ideais críticos de justiça e democracia, mas também valorizar concretamente e reconhecer a importância das experiências vividas por nossos alunos, inclusive quando as suas esperanças são o resultado das contradições do sistema que gostaríamos de mudar.

Gustavo E. Fischman
Sandra Regina Sales


  
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Edição:

Edição N.º 192, série II
Primavera 2011

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