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A inteligência competitiva e o espectáculo desportivo

A informação e a cultura são, hoje, os grandes factores de desenvolvimento. A multidimensionalidade da Sociedade da Informação, que é a nossa, exige, também dos fazedores do espectáculo desportivo, mais informação e, por extensão, mais cultura.

A inteligência competitiva (IC) resulta de uma resposta cultural e operacional à globalização e às transformações individuais e sociais que este fenómeno originou. A IC pode mesmo definir-se como um sistema cultural e operacional de recolha, tratamento, análise e encaminhamento da informação, visando o processo de tomada de decisões. A IC, como diz o meu amigo, Doutor Miguel Trigo (Universidade Fernando Pessoa), “deve fornecer a informação certa, no momento certo, de forma certa, à pessoa certa, para que, finalmente, esta última possa tomar a decisão certa”.
De acordo com os dados publicados pela Society of Competitive Intelligence Professionals (SCIP), no plano internacional, mais de 80% das empresas que atingem lucros superiores a 10 biliões de dólares possuem sistemas organizados de IC. De facto, estas empresas, actualizadas do ponto de vista científico e organizacional, apresentam departamentos de IC e superam assim as restantes em três importantes áreas: vendas, quota de mercado e ganhos por quota de mercado.
Relativamente aos profissionais de IC, a conditio sine qua non de admissão são as qualidades pessoais do candidato, a sua informação e a sua cultura. No caso do futebol, eu acrescentaria uma incontida paixão por esta modalidade desportiva. Quem gosta do que faz, trabalha mais e melhor...
A informação e a cultura são, hoje, os grandes factores de desenvolvimento. A multidimensionalidade da Sociedade da Informação, que é a nossa, exige, também dos fazedores do espectáculo desportivo (e portanto do futebol), mais informação e, por extensão, mais cultura. No nosso futebol – meu poiso durante 28 anos, de 1964 a 1992, através do dirigismo no Clube de Futebol “Os Belenenses” – há dois campos bem estremados em liça: o dos que se fundamentam na sua vida de ex-profissionais e o dos que, teoricamente tão-só, falam de futebol até à exaustão, escasseando, tanto num lado como noutro, a informação e a cultura. Trata-se de uma lacuna tão evidente... que ninguém vê!
Ocorre-me o conto de Edgar Allan Poe, «The Purloined Letter». A polícia parisiense procura, em vão, na casa de um suspeito, uma carta politicamente comprometedora. A polícia investiga os pontos mais escondidos e... Nada! Em desespero de causa, o chefe da polícia solicitou a colaboração de Dupin, precursor de todos os detectives da literatura policial, que rapidamente encontrou a carta procurada. De facto, a carta não se encontrava em nenhum esconderijo de difícil acesso, mas à vista de toda a gente. E nisto consistia a astúcia: o seu ocultamento era a sua fácil visibilidade. Acontece o mesmo com o nosso futebol. É tão evidente a incultura e a desinformação, que o fragilizam, que se torna difícil descobri-las e entendê-las.
Daí que eu ouse propor a criação de um departamento de inteligência competitiva (DIC), nos clubes de futebol profissional e na selecção nacional, liderado por um doutor em Motricidade Humana ou em Desporto e composto, ainda, por um filósofo, um psicólogo, um fisiologista (ou um médico) e um treinador de futebol. Com que objectivos? A criação de uma nova racionalidade, onde ciência e filosofia sejam complementares e, portanto, onde conhecer seja principalmente relacionar, contextualizar, organizar. E que ciência? Indubitavelmente, uma ciência hermenêutico-humana, dado que o futebol é menos uma actividade física do que uma actividade humana.
Uma teoria científica do Desporto é sempre uma teoria científica do sujeito. Sem as acções individuais e colectivas do praticante, o futebol (ou qualquer outra modalidade) não pode estudar-se como objecto do conhecimento. E, como ciência hermenêutico-humana, que método? O método, para a máquina complexa que é o ser humano, será o que decorre do pensamento complexo, ou seja, o método da complexidade, ou método integrado (cfr. Francisco Silveira Ramos, Futebol: a competição começa na rua), onde, pelas acções típicas da competição, se treinam o individual e o colectivo, o grupo e as capacidades individuais físicas, intelectuais, emocionais.
De sublinhar, também, que a realidade e a verdade são fruto de práticas discursivas complicadas. De facto, a realidade não pré-existe à razão e à linguagem. O treinador deve, por isso, saber comunicar, para motivar. Por outro lado, o método da complexidade diz-nos que o jogador é homem antes de ser futebolista e, portanto, na preparação do futebolista não pode esquecer-se o homem capaz de assumir uma racionalidade e uma ética intersubjectivas. E um rigoroso “treino invisível”…
O DIC criará, ainda, e dinamizará dispositivos de recolha, tratamento e disseminação da informação, de acordo com os mais modernos princípios da informação e da comunicação e os interesses do departamento de futebol. Semanalmente, este departamento encontrar-se-á com o treinador principal, apresentando-lhe a informação julgada necessária aos seus processos de decisão, como técnico de futebol. Também todas as semanas, o DIC fará, só com os elementos que o integram, uma reflexão crítica sobre o papel da inteligência competitiva, como resposta cultural e operacional às problemáticas criadas pelo desporto de alta competição em geral, e pelo futebol em particular. Cada um dos elementos deste departamento receberá senhas de presença pelas reuniões que efectuar.
Porque sou um teórico, tão-só, e quem não pratica não sabe – eu aprendi o futebol a memorizar e a ver, não a fazer –, peço desculpa por ter metido a foice em seara alheia. Embora os meus 42 anos a estudar e a leccionar Filosofia do Desporto e Epistemologia da Motricidade Humana me permitam, em prática multi, inter e transdisciplinar, repensar o futebol. Trabalho, aliás, necessário (no futebol e em tudo o mais), porque se alteraram profundamente os modos de produção do conhecimento.
Vale a pena ler o livro de Manuel Castells, «The Rise of the Network Society» (primeira obra de uma famosa trilogia do autor), onde as consequências de uma ciência conectada ou em rede se referem, com grande pertinência e actualidade.
Em «Linked: The New Science of Networks», Albert-László Barabási “introduz, com toda a naturalidade, as redes como modelos subjacentes à sociedade contemporânea, desde a internet às redes de electricidade, passando pelas redes terroristas (...). Na realidade, a emergente Ciência das Redes transcende o âmbito em que estamos interessados, que é o âmbito social da produção da ciência, e aplica-se a muitos aspectos sociais, desde a propagação de epidemias ao terrorismo internacional, a aspectos psicológicos como o das redes neuronais até aspectos biológicos como a rede de proteínas intracelulares” (Duarte Costa Pereira, Nova Educação na Nova Ciência para a Nova Sociedade).
Enfim, a Ciência das Redes enriquece e complexifica o conhecimento e salienta que qualquer ciência é bem mais do que os hiperespecialistas pensam. Por isso, a necessidade de um DCI nos clubes de futebol, que visite, com frequência, a ágora multidisciplinar da internet. Há “conceitos nómadas” (cfr. Isabelle Stengers, D’une science à l’autre. Des Concepts Nomades) que emigram de uma ciência para outra, irradiando a possibilidade de paradigmas alternativos à visão disciplinar convencional das ciências. No espectáculo desportivo – em Portugal, principalmente no futebol –, há quem tenha verdadeira antipatia pela migração conceptual, quando, sem ela, uma ciência não se reinventa, não se reorganiza, não se desenvolve.
O DIC incorpora-se perfeitamente no património moral de um clube que fomente e organize o espectáculo desportivo. Um protesto visceral, contra a ignorância, contra a rotina, é sempre um acto moral. Em mim, com 77 anos de idade, há, sobre o mais, a inquietude de quem resolveu não se render à usura dos anos. E com a certeza de que, no meio do confusionismo aturdidor, muitas vezes habitual no espectáculo desportivo, o DIC pode transformar-se numa reserva de lucidez, onde é possível escutar-se a palavra insubmissa e resistente. É que se aproximam a sociedade pós-capitalista e a sociedade do conhecimento...

Manuel Sérgio


  
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Edição:

Edição N.º 192, série II
Primavera 2011

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