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Guantanamo

Jovem, trabalhador e com qualidade. Detecta-se, facilmente, na frescura das suas ideias, na ambição q.b., na determinação e no rigor do pensamento espelhado nas palavras ditas. A páginas tantas, disse-me: "Vou embora, estou farto deste Guantanamo". Confesso, senti um aperto na garganta. No fundo, esta terra de senhores falantes ou de ignorância altifalante, segrega, bloqueia, mata, quem, com profissão e colocação, mantém a coluna direita, não se vende a um qualquer cartão partidário, apenas deseja construir o seu futuro, pessoal e profissional, ditado pelas convicções que assume perante a vida. Rebelde, não me pareceu, embora uma pontinha desse comportamento deva corresponder ao fogo da alma, à inquietude que se recusa conformar perante situações desconformes. Do meu interlocutor, eu diria, talvez, desajustado – porque não vê e não interpreta o mundo pelos olhares dos outros. A plasticina não corre na sua coluna. Não entra no jogo de maria-vai-com-as-outras! Os seus olhares pareceram-me de permanente interrogação: e se não for assim? Isto que parece, não é! Se insistir nisto, é óbvio que estou a contribuir para aquilo! Por aí fora, fiquei eu, mais tarde, a reflectir sobre os seus posicionamentos.
Não esperava ter um encontro tão interessante, tão cheio de vida e tão entusiasmante. Às vezes, penso, nos momentos de alguma desilusão, que sou eu que estou desajustado (?), sobretudo quando mergulho no outro lado das coisas e encontro irracionais contrapontos. Aliás, a minha interrogação ganha força no meio de um Parlamento feito para não pensar, que funciona porque a sua natureza institucional assim obriga, mas não, há muita gente que olha para isto e que se sente, qual metáfora, num “Guantanamo” sem arame. Um "Guan tanamo" de aparente liberdade, porque as celas existem, as interioridades estão feridas, a castração do pensamento livre obriga muita gente a falar baixinho, os silêncios e os medos andam por aí, as promoções destinam-se aos do circuito da cor, tal como, por oposição, a prateleira é bem visível para os não subservientes.
Neste "Guantanamo", de facto, não há tiros, algemas ou o castigo do "segredo" para quem mal se porta, mas há o equivalente, construído de forma subtil, moderna e refinada. São ilhas dentro da ilha, obrigadas a entrar na onda, no rebanho do pastor atento que solta os cães quando algum(a) se atreve a desalinhar. O pastor pede, inclusive, que rezem pela sua saúde "porque o resto é com ele". Como se há 36 anos não soubéssemos que os actos ditatoriais têm origem em uma monumental engenharia política, que tende para a robotização comportamental dos seres humanos que aqui nasceram ou escolheram para viver.
Foi bom falar com este jovem. Para alguns, com toda a certeza, fala de mais. Pelo contrário, digo eu, pensa alto, não se refugia, hipocritamente, na redoma dos interesses, não joga para o baú as sensações e percepções do terror dos silêncios por aí espalhados, esse napalm político que mata a consciência e o pensamento livre. A sua fuga de "Guan ta namo", apesar do constrangimento que a metáfora em mim produziu, concedeu-me o redobrado entusiasmo para continuar a dizer alto aquilo que, infelizmente, pela sua idade e estatuto torna-se perigoso.
Porque sou mais velho, porque conheço bem esse "Guantanamo" e porque eles têm mais dificuldade para enfrentar-me. Mas sei o que é ser novo, ter ideias, ter imaginação e sonho, ser democrata e sentir-se condicionado. Portanto, vá e regresse, mas não perca as suas convicções de Homem que quer exercer a sua profissão em Liberdade e com Responsabili dade. E enquanto forças houver, meu caro, por aqui continuarei por uma Escola portadora de futuro que desperte da anestesia, por uma Cultura que não se confine ao “baile pesado”, à espetada e ao bolo-do-caco e por um desporto ao serviço do desenvolvimento.

André Escórcio

Escola Básica + Secundária Gonçalves Zarco (Funchal)


  
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Edição:

Edição N.º 190, série II
Outono 2010

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