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O consumo e o governo da vida

Há que ser feliz a qualquer preço. Compra-se a felicidade e a felicidade está nas compras. Assim, a felicidade foi banalizada e transformada em mercadoria.

Este artigo é “um informe enviado do campo de batalha” [Zygmunt Bauman, «Mundo Consumo. Ética del individuo en la aldea global»], escrito a partir de meu diário de campo como pesquisadora dedicada à investigação das repercussões da cultura da mídia e do consumo na vida de crianças e jovens contemporâneos. Algumas delas tenho abordado nesta rubrica da PÁGINA, predominantemente subsidiada pelas análises de Bauman. Agora, um estágio oportunizou-me tanto a convivência com miúdos em viagem de férias por terras lusas, quanto evidências do consumo operando como dominante cultural em nosso tempo.
Uma de minhas impressões é que adultos sofrem do problema crônico da lentidão ao qual garotos reagem com insistentes incentivos à ação, orientada para a definição urgente e renovada de programas e atividades. Posicionam sempre no topo das prioridades as compras em shoppings e lojas conhecidas. A mercantilização da cultura e da vida mostra uma de suas faces já aí, sendo hoje a “negociação” uma das pautas da convivência entre pais e filhos. A visita a algum museu equivale à conquista da entrada em alguma loja.
E não há tempo a perder; nas estações de metro, assim como em paradas de autocarro e nas telas das TVs, dos notebook se telemóveis, os convites são permanentes, irresistíveis e renovados com uma impressionante rapidez. Uma evidência contundente da eficácia dos media na interpelação de crianças e jovens é a habilidade dos miúdos para localizar e decifrar as convocações ao consumo disseminadas nos mais inusitados espaços.
A publicidade espalhada pelas cidades sobre o esfuziante telemóvel recém-lançado com a chancela da Hello Kitty suscitou um comentário sugestivo de parte de um dos garotos que acompanhei: “Que pena que essa oferta é para meninas! Se houvesse para meninos eu compraria imediatamente!”. Algum leitor ou leitora que tenha visitado as lojas de conhecida cadeia espanhola terá visto, como eu, durante duas semanas de Julho, as imensas peças publicitárias do tal telemóvel aderidas às portas dos elevadores. Quatro ou cinco portas a abrir e a fechar-se incessantemente em conjunto produziam um fantástico efeito de movimento e atualidade. Como se fosse um aceno incansavelmente a convidar as crianças para conhecer e adquirir o modelo da hora. Atraentes como essa publicidade são os incontáveis artefatos oferecidos, transformados pelos media em irresistíveis objetos de desejo. Nos shoppings, propriamente identificados como templos do consumo, os departamentos de eletrônicos e de todo tipo de novas tecnologias, alinhados com as seções de roupas e adereços para meninos e meninas jovens, são a atração preferida.
Minha atitude pasma diante da volúpia consumista demonstrada pelos miúdos provocou a manifestação dos familiares. Um pai explicou que estavam de férias e haviam conquistado o direito à satisfação de tais desejos ao cumprirem suas obrigações nos estudos. Uma mãe, por sua vez, com preocupações de ordem afetiva e psicológica, argumentou que, em um mundo de tantas ofertas e convocações, de tanta competição e comparações, a restrição demasiada ao impulso consumista poderia gerar problemas complexos e difíceis de administrar. Para ela, hoje as pessoas conquistam espaços nos grupos de amigos, assim como também entre colegas na escola, em correspondência direta com sua capacidade de portar e estar familiarizado com as mercadorias em voga na atualidade. Estas variam de grupo para grupo, em consonância com suas culturas e interesses, mas implicam sempre aquisição e descarte incansavelmente praticados.
Em síntese, quem não adquire constantemente as mercadorias da moda e circula com elas, não assegura o pertencimento a qualquer grupo. A conduta consumista acaba sendo um traço identitário e equivale a um passe, a uma senha para acesso aos círculos de convívio desejados. Além disso, um desejo insatisfeito gera frustração e infelicidade – problemas muito graves em sociedades que fazem da felicidade um imperativo. Há que ser feliz a qualquer preço. Compra-se a felicidade e a felicidade está nas compras. Assim, a felicidade foi banalizada e transformada em mercadoria.
Meu diário de campo reúne incontáveis registros similares a esse, evidências inequívocas da centralidade da cultura (Stuart Hall), do consumo como uma dominante cultural (Fredric Jameson, Zygmunt Bauman e outros) e do governo pela cultura (Stuart Hall). Parece que nossas vidas estão hoje atreladas a poderosos circuitos gestores onde corporações empresariais coordenam e administram nossa existência. O que desejamos, fazemos, pensamos e defendemos está sempre, de diferentes maneiras, implicado nas contemporâneas formas de governo da vida, todas elas assentadas sobre táticas que acionam fascínio, emoção, prazer, deleite, fruição e, de uma ou outra forma, dirigem para o consumo.

Marisa Vorraber Costa

Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana (Brasil)


  
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Edição:

Edição N.º 190, série II
Outono 2010

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