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Ensino Superior em África: entre Bolonha e a realidade

Numa tradução de textos de Chuang Tse, Octavio Paz começa por salientar a oportunidade das reflexões do filófoso chinês, expressas através de breves diálogos, num tempo que era já de culto de arrazoados discursivos como antecipação de reconfigurações políticas, sociais e económicas ou outras: “En nuestra época erizada de filosofías y razonamientos cortantes y tajantes (preludio necesario de las atroces operaciones de cirugía social que hoy ejecutan los políticos...), nada más saludable que divulgar unos cuantos de estos diálogos llenos de buen sentido y sabiduría. Estas anécdotas nos enseñan a desconfiar de las quimeras de la razón y, sobre todo, a tener piedad de los hombres”. O poeta e ensaísta mexicano transfere para o seu tempo as críticas que os taoístas Lao Tse e Chuang Tse faziam da sociedade que era a sua: “Nuestra época ama el poder, adora el éxito, la fama, la eficacia, la utilidad y sacrifica todo a esos ídolos. Es consolador saber que, hace dos mil años, alguien predicaba lo contrario: la oscuridad, la inseguridad y la ignorancia, es decir, la sabiduría y no el conocimiento”.
Os dilemas e encruzilhadas que as instituições de Ensino Superior, em África e no resto do mundo, enfrentam no contexto das mudanças – políticas e económicas – em curso na última década, não se esgotam nessas antinomias. Mas há questões presentes nas considerações de Octavio Paz que podem ser retomadas ao analisar as lógicas e racionalidades que impregnam aquelas mudanças.
O(s) sentido(s) das reconfigurações dos sistemas de Ensino Superior e das universidades europeias consagradas no texto da Declaração de Bolonha podem sintetizar-se, para os objectivos deste artigo, nos princípios de:

i) participação e contribuição do Ensino Superior para a construção e coesão de um espaço regional político, económico, social e cultural;

ii) criação e garantia de competitividade do Sistema Europeu de Ensino Superior;

iii) estabelecimento de comparabilidade e compatibilidade dos diferentes sistemas de Ensino Superior;

iv) adopção de um sistema assente em dois ciclos de estudos; instituição de um sistema de créditos;

v) estímulo à mobilidade de estudantes, docentes e investigadores.

Em termos ainda mais genéricos, o Espaço Europeu de Ensino Superior visaria o desenvolvimento da “empregabilidade” e das “oportunidades de emprego”, a circulação dos cidadãos e o desenvolvimento global do continente, no pressuposto de que o “Ensino Superior e os sistemas de estudo se adaptem às necessidades de mudança, às exigências da sociedade e aos avanços do conhecimento científico”, orientações que textos de documentos posteriores vieram reforçar e especificar melhor, designadamente as relacionadas com a “criação de um espaço económico competitivo”.
Esta retórica, incansavelmente reproduzida, por vezes de forma pouco crítica, por eminentes instituições e académicos, alastrou muito para além das fronteiras europeias:

– no Brasil, assim como noutros países do Mercosul, e em África – designadamente no espaço da Southern Africa Development Community (SADC) –, a argumentação arregimentada para justificar acções reformistas dos sistemas de Ensino Superior alude de forma directa ou indirecta a conteúdos da Declaração de Bolonha;

– em 2004, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) produziu um documento – conhecido por Declaração de Fortaleza – que lançou as bases para a construção de um Espaço de Ensino Superior da CPLP, propondo um programa semelhante;

– a ideia da criação de um espaço como o African Higher Education Area (AHEA) foi discutida no âmbito da conferência internacional The African Universities’ Adaptation to the Bologna Process, realizada na Universidade de Lumbumbashi (Congo, Julho de 2007);

– na região Ásia-Pacífico, em Abril de 2007, uma reunião de ministros da Educação de 27 países deixou clara, na Declaração de Brisbane, a intenção de promover a harmonização dos sistemas de Ensino Superior – também neste caso, os itens propostos para discussão antecipam o perfil das políticas a definir: “What actions on education and training can be agreed that will strengthen good relations in the region; and underpin its social and economic development, through the international mobility of students and research collaboration?“.

Efeitos práticos e identificáveis nos sistemas de Ensino Superior das regiões referidas são os que têm a ver com o redimensionamento dos ciclos de estudos, os processos de harmonização de graus e as reestruturações curriculares, com o argumento da necessária servidão do mercado de trabalho e do sistema económico.
Identificáveis são, aí e na Europa, igualmente, os efeitos de secundarização de outras missões “históricas” do Ensino Superior e das universidades, de redução dos financiamentos públicos e implicação dos estudantes na partilha de custos, de afunilamento da diversidade de instituições, com ênfase preocupante, como assinala Ulrich Teichler, na prioridade à componente vocacional.
Paralelamente, um dos mais expressivos argumentos destas mudanças centra-se na inevitabilidade de, face à emergência da “economia informacional” e da “sociedade do conhecimento” (mantras dominantes nos actuais evangelhos que escondem, como lembra Damtew Teferra, “a enorme importância dos recursos naturais para o desenvolvimento”), converter as instituições de ensino de acordo com modelos que as tornem doravante flexíveis e prontamente responsivas às necessidades imediatas das sociedades e da economia.
Este será, no actual contexto sociopolítico, económico e cultural, o único – ou principal – factor de legitimação das instituições de Ensino Superior, que deverão, assim, orientar prioritariamente a respectiva missão para a produção de conhecimento útil ao desenvolvimento económico, de conhecimento directamente prestável para os êxitos da economia.
As articulações entre tópicos, percepções e prescrições da literatura da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económico (OCDE) nas últimas décadas não são especialmente difíceis de cartografar e, tal como Guy Neave assinalou, muitos dos princípios da Declaração de Bolonha não são novidade e já se encontravam em discursos e em textos de documentos anteriores da OCDE, e, aliás, de outras organizações internacionais (cf. documentos do Banco Mundial sobre Ensino Superior, das décadas de 80 e 90).
Em África, lembra Daniel Sifuna, da Universidade de Nairobi, a literatura sobre reformas educativas repete ideias e orientações com origem nos anos 80 – designadamente as que elegem a aposta e a expansão de programas de estudos profissionalizantes, quer ao nível do Ensino Secundário, quer ao nível do Superior; a sua filiação genealógica remonta, especificamente, às políticas do Consenso de Washington e do ajustamento estrutural.

O conhecimento contra a sabedoria

É significativo que as “dimensões externas” do Processo de Bolonha sejam objecto de reflexão interna. A par da dimensão de competitividade, a atractividade, a abertura e a cooperação são aspectos sublinhados como relevantes. “The main aims of cooperation between Bologna-countries and other regions was focused on promoting the ‘Bologna idea’ to the regional cooperation ‘à la Bologna’”, escreve Pavel Zgaga num documento do Working Group on the External Dimension of the Bologna Process.
No caso de África, as “dimensões externas” de Bolonha interagem com sistemas cuja diversidade é ainda uma herança colonial, por um lado, e, por outro, com instituições afectadas pela deterioração das circunstâncias económicas nacionais, pelas medidas dos programas de ajustamento estrutural e respectivas políticas de redução draconiana de custos, e pelos efeitos colaterais das prioridades de financiamento ao Ensino Básico, promovidas pelo Banco Mundial, durante as duas últimas décadas do século XX, em detrimento da educação superior. Neste contexto, alerta Goolam Mohamedbhai, antigo presidente da Associação Internacional de Universidades e conselheiro da UNESCO [Organização da Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura], as universidades africanas enfrentariam situações de risco, e não apenas em termos de competição na esfera do mercado do Ensino Superior. Para Mohamedbhai, a área da cooperação pode ser seriamente afectada neste novo cenário: “there is the danger that European universities will now prefer to collaborate with their counterparts in Europe rather than with those in the south. This would have a negative impact on the latter”.
Esta é apenas uma das faces do impacto de Bolonha, uma das mais preocupantes para Mohamedbhai, dadas as implicações que tem para a ordem internacional, através dos efeitos sobre o diálogo inter-cultural: “Universities in the south are struggling to cope with massive increases of students, dwindling financial and human resources, reduced research output, etc. Their links with universities in the north do help them to find solutions to some of the challenges they face and to keep abreast with the latest international trends in higher education. I fear that the Bologna reforms could lead to an isolation of HEIs in some parts of the world”. Uma outra dimensão é a que tem a ver com a emulação, e, nesse aspecto, Damtew Teferra sugere que África pode beneficiar com as “lições” de Bolonha, particularmente na esfera da cooperação académica regional, desde que a apropriação seja efectivada mediante um processo selectivo e que a competição se possa revestir de características “construtivas”. Teferra refere-se, também, a consequências negativas para as instituições africanas, assim como as políticas de cooperação que poderiam ser, simultaneamente, de prevenção e de reparação objectiva dos efeitos destrutivos dos programas de financiamento condicionado que levaram à degradação das instituições de Ensino Superior africanas.
Mas a “realpolitik” – e as premissas ideológicas que sustentam o neoliberalismo – desvaloriza e despreza “obrigações” morais ou outras considerações fora do reduto filosófico do self-interest. Teferra interroga-se, com pertinência, sobre a compatibilidade entre os desígnios da competição e os valores da cooperação.
A Europa da declaração – a académica, a política e a económica –, refém da racionalidade da competição, será capaz de alguma forma de equilíbrio entre os princípios da competição feroz (no plano da economia, como no da disputa do mercado pelas instituições educativas) e da cooperação, ambas incensadas pela retórica discursiva da construção do Espaço Europeu do Ensino Superior?
Sifuna acrescentaria a esta equação, provavelmente, a persistência das elites académicas africanas em manterem sistemas educativos distantes das necessidades de África e respectivas genuflexões perante modelos externos, apropriados sem o grau de selectividade a que se refere Teferra, ou por incapacidade negocial, ou por simples fidelidade a interesses (políticos/acadécmicos) de classe.
Com a mesma veemência crítica, Hocine Khelfaoui, académico argelino da Universidade de Boumerdès, discutiu as utilidades retóricas de certos conceitos empresarialistas (como empregabilidade) no contexto africano, onde parece agravar-se um distanciamento entre os campos político e académico. A propósito, num número especial de 2009 da revista «Journal of Higher Education in Africa», Khelfaoui assinala estudos que parecem dar razão às observações de Sifuna: “there are dissensions everywhere between a reform targeting the development of professions in line with European contexts and means (educational outreach, industrial base, favorable scientific environment...) and contexts of deprivation sagging under the rise of student numbers”.
Tais conceitos, terminologia, argumentação, etc., que povoam os textos de Bolonha, têm uma figuração exótica em muitos contextos africanos, condicionados por profundos constrangimentos estruturais: as circunstâncias não favorecem qualquer veleidade de autonomia aos estudantes, face à carência de documentação, de recursos bibliográficos, de acesso à internet e às difíceis condições de vida material, recorda Khelfaoui.  Quando os contextos se apresentam mais consentâneos com os cenários descritos pela fábula bolonhesa, Khelfaoui conclui, com alguma crueza: “The BP [Bologna Process] is inseparable from the policy of liberalization of markets and prepares or supports the alignment of African countries with the criteria of the GATS” [General Agreement on Trade in Services]. O conhecimento contra a sabedoria, diria Chuang Tse.

Humberto Lopes

Centro de Investigação e Intervenção Educativas (FPCEUP)


  
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Edição:

Edição N.º 190, série II
Outono 2010

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