Página  >  Edições  >  Edição N.º 190, série II  >  Actividades que enriquecem

Actividades que enriquecem

Desde que os adultos inventaram a criança, a vida dela nem sempre melhorou. Cientes da distância que vai entre o conceito e a prática, os adultos inventaram também os Direitos da Criança, adenda politicamente correcta da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Porém, fica a estranha sensação de que a criança se assemelha mais a património da humanidade, ao dispor dos adultos, do que a um ser inteligente, que raciocina e que para tal precisa de interlocutores que raciocinem com ela e medeiem o seu tacteamento do mundo dos adultos.
Na sociedade que inventou a escola, para que o agente da educação possa – como observa Philippe Meirieu, tal Frankenstein – construir o homem, a criança ficou condenada ao encarceramento obrigatório, largas horas por dia. Desde que a escola foi inventada, há quem estuda o seu lado opressivo, normativo, apontando outros caminhos de mediação – colectiva ou individual – da aprendizagem da população juvenil. Houssaye fala de pedagogos [«Manifesto a favor dos pedagogos»] e define-os como professores que começaram a reflectir acerca da sua profissão.
Escrevo estas linhas a propósito das actividades de enriquecimento curricular e do trabalho das equipas que, como nesta rubrica já referi, acompanho, na periferia da capital.
Cá, e até há pouco tempo, as crianças alternavam o tempo da escola com tempos de lazer mais ou menos organizados, em casa, em casa de familiares, em espaços lúdicos, ateliês de tempos livres, clubes desportivos. Adultos, adversos ao ócio e ao lúdico, controlavam, desde há muito, parte deste tempo que escapava à jurisdição da escola: fazendo do trabalho intelectual esforçado, e que não obedece a tempos pré-programados, uma caricatura, impuseram trabalhos forçados, intitulados de trabalho de casa. Esta prática, junto com a constatação do tempo desperdiçado em deslocações, abriu a porta a mais horas de encarceramento num único lugar, intitulado de escola ou de centro escolar. A sociedade escolarizada, em vez de questionar a gradual institucionalização das crianças, aplaude-a entusiasticamente. Mais: empregados e empregadores reclamam regularmente o alargamento de horários, procurando assim que os descendentes deixem de intervir na regulação das suas relações laborais.
Os primeiros contactos com esta nova realidade foram desoladores: na melhor das hipóteses as crianças foram transportadas de um armazém de pessoas fora da escola para um depósito dentro dos muros da instituição. Mas em muitas situações, tratou-se de um retrocesso na mediação da actividade criativa. Sujeitas a educadores, professores, formadores, que se consideram sujeitos a um currículo numa actividade que se define ambiguamente de enriquecimento curricular, as crianças tiveram que se render: o livre desenho normalizou-se, a livre exploração do espaço regulamentou-se, a leitura e a escrita passaram de acto de lazer para acto controlado. O animador ou artista, olhado com desconfiança, foi quase sempre substituído pelo agente certificado para o trabalho em recintos escolares, de preferência fechados. Desde há três anos fizemos caminho. Temos algumas equipas que aprenderam de novo a ouvir as crianças, a abraçar os seus desejos e as suas capacidades como ponto de partida para projectos de trabalho que lhes dizem respeito e que lhes fazem sentido. Às vezes olhadas com desconfiança, procuram explicar a docentes distraídos, nem sempre com êxito, que o currículo das disciplinas de Inglês, de Música e de Educação Física não “desceu” do 2º para o 1º Ciclo. Equipas que quebraram, mais uma vez, as fronteiras disciplinares que surgiram no tempo extra do ciclo do qual o desenho curricular não apresenta estas fronteiras. Equipas que gerem, junto com as crianças, actividades e espaços de aprendizagem. Equipas que expõem, trocam, apresentam, escrevem. Coisas de qualquer tempo da sociedade do tempo da escola, onde uma minoria se escreve a memória que a instituição lhe recusa. Uma actividade de enriquecimento. Obstinadamente.

Pascal Paulus

Escola Básica Amélia Vieira Luís (Outurela)


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

Edição N.º 190, série II
Outono 2010

Autoria:

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo