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Discurso sobre as pessoas

Quem leu o discurso de D. Manuel Clemente, bispo do Porto, proferido, em Abril passado, na cerimónia de aceitação do Prémio Pessoa 2009, há-de ter ficado surpreendido se partiu da expectativa de uma centralidade teológica que se julga inerente ao pensamento dos membros da hierarquia da Igreja Católica, independentemente do grau de aggiornamento com que, integristas e progressistas, respondem ao II Concílio do Vaticano. Mas pelo reconhecimento de uma personalidade cuja cultura universitária e acção pastoral de diálogo com o mundo moderno o obrigava a não desprender os pés da Terra, por mais respeito que o Céu lhe merecesse, já não foi surpresa que um certo pragmatismo o introduzisse na problemática de um velho debate que ainda continua, qual epifenómeno de ciclos históricos de exaltação e desalento, sobre a nossa ideia nacional (ou condição?) de ser como povo.
E questiona: “Seremos problemáticos, os portugueses, mas por nos resumirmos de mais. Olhemos a nossa historiografia, desde que a começámos a fazer e até bem perto donde estamos: há grandes figuras, de ‘hagiografia’ variada, e há generalidades das gentes, depois do ‘povo’ e mais proximamente da ‘nação’… Não nos encontramos assim. Sonhamos ou detestamos heróis, conforme a mentalidade da época; resistimos hoje às identificações massivas e nesta reacção ficamos mais lúcidos.”
Se hoje fôssemos capazes de resistir às identificações massivas, que também se construíram lendo (ou treslendo) a hagiografia das grandes figuras, consideraríamos irrealista a afirmação com que Eça de Queiroz nos resume, cruelmente, no seu artigo sobre o (nosso) «Francesismo»: “A alma de um povo define-se bem a si mesma pelos heróis que ela escolhe para amar e cercar de lenda.(…) O nosso genuíno herói, e isto resume tudo, é o poético e pensativo D. Sebastião.”
Nada mais realista, no século XIX, mas também hoje, se pensarmos que os portugueses ainda se podem “resumir” nas grandes figuras, sobretudo quando a sua identidade nacional é confrontada com “franceses” ou quejandos... Na verdade, os seus “heróis”, sendo ou não míticos e cercados de lenda, são amados como se o fossem: por impulsos que se dirão patrióticos, uns, resgatados das brumas da memória, chamaram-se Viriato, Afonso Henriques, Nuno Álvares Pereira, Vasco da Gama; outros, alimentando a memória viva, chamam-se Eusébio, Cristiano Ronaldo, José Mourinho. E todos, como sendo partes da mesma “massa” mortal (a que o nosso orador junta Camões, o Padre António Vieira e Fernando Pessoa), não são tomados como eleitos dos deuses nem isolados da comunidade concreta das pessoas “que nós somos, sempre com os outros e por vezes magnificamente.”
Pelo que, continua o nosso orador: “Não, realmente não somos o contraste de grandes picos singulares com imensas planuras colectivas. Não somos nem podemos considerar-nos eternos devedores de descomunais figuras ou meros encomendadores de grandes almas. Não somos nem devemos ser imperadores do mundo ou mendigos da Europa. Porque o que somos, realmente somos, é a herança actual e viva de muitos homens e mulheres que, vivendo, convivendo e morrendo como todos os demais, recortaram e em geral sustentaram a mais antiga realidade política do nosso continente; que, dentro e fora dela, criaram e criam uma maneira de estar consigo e com os outros que concita a admiração de muitos e oportunamente serve a comunidade internacional.”
Ainda isto lembra Eça, quando, na polémica com Pinheiro Chagas sobre o patriotismo, distinguia o sentido da verdadeira representação nacional dos que amam, servindo, a pátria: “Não dedicando-lhe estrofes, mas com a serenidade grave e profunda dos corações fortes. Respeitam a tradição, mas o seu esforço vai todo para a nação viva, a que em torno deles trabalha, produz, pensa e sofre: e deixando para trás as glórias que ganhámos nas Molucas, ocupam-se da pátria contemporânea, cujo coração bate ao mesmo tempo que o seu, procurando perceber-lhe as aspirações, dirigir-lhe as forças, torná-la mais livre, mais forte, mais culta, mais sábia, mais próspera, e por todas estas nobres qualidades elevá-la entre as nações.”
O padre António Vieira (no trilho do milenarismo de Bandarra), nos seus Sermões de Roma, considerava os portugueses como um povo providencialmente eleito para inspirar um Império do Espírito Santo, que tendo pouca terra para nascer escolhera o mundo para morrer, e exortava os coetâneos a perguntarem aos avós quantos saíram e quão poucos tornaram, fixando que “estes são os ossos de que mais se deve prezar o vosso sangue”.
Era esse o tempo em que, ao lado dos celebrados heróis, as pessoas anónimas (também chamadas “povo” e “nação”) de Portugal cevavam a sua “identidade massiva” com a Saudade e a Esperança, ora esperando que um Deus lhes desse uma Graça, ora que um Encoberto saído do nevoeiro lhes mudasse o Fado.
Depois, com o Advento promissor da indústria, da tecnologia e da globalização dos meios de produção e do mercado, as pessoas, em Portugal e no resto do mundo, sob a pressão de iguais conexões hedonistas, perderam a qualidade de sujeitos da História para se tornarem objectos unidimensionais do Consumo. Por quanto tempo, ninguém sabe. Mas o que se vê e que ficou da memória dos heróis e dos santos mais antigos, que enchiam as almas cercados de lenda, é o que, ainda massivamente, sobrenada, em programadas celebrações, nos estádios desportivos ou nos santuários religiosos. Quem ousaria hoje, como o Padre António Vieira, escrever uma História do Futuro?

Leonel Cosme

Escritor


  
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Edição:

Edição N.º 189, série II
Verão 2010

Autoria:

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