A questão em foco é a obra de arte como texto didático. No caso, é o lugar da escultura hiper-realista no contexto da sala de aula.
Abrindo a PÁGINA de Inverno de 2009, fiquei bastante impactada com a ilustração final do texto que eu havia escrito. Ocupando praticamente a metade da página 59, lá está uma cabeça sem corpo, que jaz de lado, com a cor e todos os detalhes assustadoramente realistas. Olhei para o título, Diferentes produtos culturais como textos didáticos?, depois para o corpo do texto, demorando-me no trecho que pretendeu sintetizar a proposta: “quero defender a apropriação educacional dos textos que circulam socialmente. Para além das intenções da produção e dos formatos assumidos, os mais diversos produtos culturais podem ser apropriados como textos didáticos”. Entre o corpo do texto e a imagem da cabeça, o anúncio dos desafios desta apropriação parecia estar latejando. Senti-me desafiada a, sem “perder a cabeça”, voltar ao tema. No enredo da minha origem cristã ocidental, não pude evitar pensar na cabeça de São João Batista, exibida verticalmente em uma bandeja. Idem nas imagens de decapitação que costumavam assombrar algumas aulas de História, quase sempre evocadas pela lâmina da guilhotina representada nos meus livros de aluna. Em contrapartida, também me lembrei da imagem chocante de uma peça publicitária de um grupo de ensino privado, que também monta e vende computadores [veiculada na revista «Nova Escola» nº 175, de Setembro de 2004]. Nela, como um lembrete a ser afixado no quadro de cortiça, o foco é posto na ausência de interesse dos alunos e a professora, sem tecnologias digitais disponíveis, é retratada sem cabeça! Ainda pensei no susto dos outros leitores daquele texto “invernal”, especialmente nos professores que trabalham com crianças. Naquela disjunção de texto escrito e imagem, produzidos em lugares e condições diferentes, o que pulsa são as próprias possibilidades de leitura(s). Quando escrevi, estava pensando na “provisoriedade que marca a cultura do descarte”, comum a manifestações culturais muito aquém da erudição historicamente associada à Escola e, que, embaladas pela mídia, podem virar modismos. Pensava, por exemplo, no “rebolation” (pronunciado reboleixon), definido pela Wikipédia como um estilo de dança, sob música eletrônica, em que os movimentos de braços e pernas sugerem que o dançarino deslize na superfície. Um sucesso instantâneo e estrondoso, no Brasil, com letra homônima marcada pela repetição. Pensava no que os alunos vêem, ouvem, cantam e dançam fora da escola e que trazem para ela de muitos modos. Voltando à cabeça gigantesca ao final daquele texto, a questão em foco é a obra de arte como texto didático. No caso, é o lugar da escultura hiper-realista no contexto da sala de aula. É a apropriação daquela (Mask II, 2001-2002) e de outras esculturas de Ron Mueck, artista australiano que se notabilizou pela utilização de efeitos especiais cinematográficos para a criação de estruturas incrivelmente realistas de enormes proporções – aquela cabeça, por exemplo, mede 77,2 x 118,1 x 85,1 cm. De que modos estas e outras obras de arte podem entrar na sala de aula? Ficam restritas às aulas de arte propriamente dita? Que entradas o hiper-realismo pode encontrar na abordagem literária, filosófica, psicológica etc.? Que caminhos estéticos podem ser pavimentados? Seriam apenas os caminhos já trilhados nas ciências humanas? Haveria frestas, como a das proporções, na tentativa de um olhar 360º sem o recurso à terceira dimensão? A cabeça pode não ser um desafio gigantesco, desde que as situações de ensino-aprendizagem não se agarrem às confortáveis e limitadas fronteiras do que já está legitimado como conteúdo. Uma cabeça assim tão “real” e enorme merece um corpo de práticas para a sua sustentação.
Raquel Goulart Barreto
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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