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São precisas mais escolas de segunda oportunidade em relação à escolaridade formal

Todos os anos, cerca de quinze mil jovens portugueses saem da escola sem completarem o nono ano de escolaridade, aumentando as fileiras de cidadãos desqualificados. A Educação de Segunda Oportunidade, lançada na Europa em 1995, quer assumir-se como uma resposta educativa alternativa em relação sos sistemas formais de educação e formação. Para saber mais sobre este projecto, conversámos com Luís Mesquita, um dos mentores deste projecto em Portugal e presidente da Associação para a Educação de Segunda Oportunidade (AE2O).

Em que contexto surge esta escola?

Esta escola surge no âmbito do Projecto Europeu das Escolas de Segunda Oportunidade, projecto-piloto da Comissão Europeia iniciado em 1999 e prolongado até 2004, através do qual se criou uma rede de escolas - na qual chegou a estar incluída uma escola localizada no Seixal que, no entanto, acabou por encerrar. É em 2004, precisamente quando este projecto-piloto estava na sua fase final, que um grupo de professores destacado numa escola do concelho de Matosinhos abrangida pelo Programa Integrado de Educação e Formação na Escola (PIEFE), onde eu próprio me incluía, toma conhecimento dele. Na altura pareceu-nos que os intercâmbios internacionais previstos no projecto poderiam, de alguma maneira, ajudar os nossos alunos, pelo que estabelecemos um intercâmbio com uma escola dinamarquesa que integrava a rede. Nesse mesmo ano decidimos fundar a Associação para a Educação de Segunda Oportunidade (AE2O) e iniciamos o caminho que nos levou à abertura desta escola.

A associação tem um âmbito europeu e nacional?

O financiamento do projecto foi assegurado pela Comissão Europeia até 2004. Quando ele cessou muitas escolas fecharam portas. Depois disso, as escolas que permaneceram em funcionamento criaram uma rede a nível europeu através de uma associação de carácter não-governamental. Esta rede europeia, porém, é mais do que uma mera associação de escolas, porque inclui também autarquias e outras associações não-governamentais. Tem, por assim dizer, três níveis de filiação. Neste momento somos membros dessa rede como organização, porque o nosso processo de acreditação como escola está ainda a decorrer.

Esta escola distingue-se das do ensino formal sobretudo pela especificidade da sua oferta educativa. Pode elucidar-nos acerca deste aspecto?

Estas escolas surgem na medida em que existe um público europeu jovem, na faixa etária dos 15 aos 25 anos, caracterizado por baixas qualificações, pelo risco de exclusão social e, consequentemente, pela dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, para o qual as respostas educativas formais são inadequadas. Neste sentido, as escolas de segunda oportunidade constituem sobretudo uma proposta motivacional, proporcionando uma oferta educativa que desperte interesse a estes jovens e lhes permita, entre outras coisas, regressar a um percurso formativo.
Cada formando tem à disposição oficinas vocacionais – electricidade, electrónica, construção civil, cozinha, hotelaria, turismo, multimédia e informática - onde ocupa a parte mais significativa do seu horário, complementada com actividades de educação artística, que incluem dança, música, grafitti, teatro, malabarismo, etc, representando cerca de um quinto do horário semanal de formação. Parte desta formação é dada por formadores estrangeiros convidados e por parceiros de projectos de outras organizações europeias.
Esta oferta concretiza-se não só através de uma componente vocacional associada a actividades de formação profissional, que procuramos serem ajustadas às necessidades do mercado de trabalho local, mas também a uma componente de aconselhamento e orientação, desenvolvida por um conjunto de técnicos que, assumindo um papel de tutor, se preocupam com os problemas destes jovens, estabelecendo com eles relações fortes de comunicação. Ou seja, ocupamo-nos de questões que não se limitam ao foro educativo, nomeadamente com os rendimentos das famílias, com a preocupação em assegurar o rendimento mínimo, a habitação, etc.

Estas escolas não estão incluídas na rede de ensino formal...

Não. Estas escolas resultam essencialmente de um esforço conjunto da comunidade local, desde os responsáveis educativos, às empresas, passando pelos organismos locais. Cada país tem, no entanto, um modelo próprio. Na Dinamarca, por exemplo, é um sistema público, em cada município existe uma escola de segunda oportunidade integralmente financiada pelo Estado.
No nosso caso resulta de uma parceria entre o Ministério da Educação, a Câmara Municipal de Matosinhos e a nossa associação. Uma das exigências deste modelo de escolas, aliás, passa pelo envolvimento de uma autoridade local.

Pelas características que nomeou, o projecto educativo deve assentar sobretudo em planos individuais de formação...

Precisamente. Um plano individual de formação onde procuramos combinar os interesses dos jovens com as ofertas da escola, o equilíbrio entre aquilo que os motiva e aquilo que precisam para desenvolver um conjunto de competências pessoais e sociais. A nossa principal ambição é manter estes miúdos connosco. Abrimos a escola com 45 jovens e decorridos quatro meses não temos nenhuma desistência. Para nós isso é uma vitória.
Paralelamente, temos também o objectivo de certificar a aprendizagem. Apesar de este tipo de escola não ter como principal objectivo a certificação, ela foi incorporada no nosso projecto educativo porque estes jovens precisam dela. E muitas vezes temos de negociar esse percurso com os jovens, porque eles acabam por ter actividades de formação de que não gostam muito, mas que são indispensáveis para entrar nesse percurso de certificação.

De que forma se processa essa certificação?

Actualmente temos dois percursos de certificação, um correspondente ao 6º ano, outro ao 9º ano. Até porque temos também dois tipos de público: os jovens adultos, maiores de 18 anos, para os quais existe um protocolo com os centros de novas oportunidades – a formação é da nossa responsabilidade, a certificação cabe ao CCRV; e os mais jovens, em que o processo de certificação é feito em colaboração com a Escola Secundária Óscar Lopes, em Matosinhos, ou com centros de formação profissional com quem articulamos a formação correspondente ao 9ºano. É um modelo muito flexível, os problemas vão sendo resolvidos à medida que vão aparecendo. Estamos a aprender fazendo.

Para além do protocolo existente entre o ME e a autarquia de Matosinhos, com que tipo de apoios institucionais e financeiros contam?

Este projecto nasceu do impulso da nossa associação. É, acima de tudo, um projecto associativo que congrega profissionais de educação que não se conformam com a situação destes e de outros jovens. Nós pensamos que o abandono escolar resulta de uma dupla realidade: é feito de abandonantes e de abandonados – porque, num certo sentido, o sistema educativo os abandonou a eles. Nós sentimos que as escolas têm uma responsabilidade para com estes jovens e achámos, nesse sentido, que fazia falta este tipo de resposta. Basta dizer que começamos com 45 jovens e temos uma lista de espera enorme. Nos primeiros três meses de funcionamento fomos contactados diariamente por instituições como as comissões de protecção de menores, equipas da segurança social e instituições que trabalham com crianças e jovens a sinalizarem-nos casos. Isto significa que este tipo de resposta é indispensável e que existe uma franja de jovens a que não estamos a conseguir responder.

Será que a resposta a este tipo de problemas não passará, entre outras possibilidades, por uma nova oferta curricular e por um leque mais alargado de currículos vocacionais nas escolas do ensino regular?

Eu acho que este é um trabalho que deveria envolver um maior número de instituições. As estatísticas mostram que em Portugal cerca de 20 por cento dos jovens não conclui o 9º ano. O que é muito preocupante, não existe outro país na Europa na mesma situação. E o problema não está na falta de respostas, está no modelo dessas respostas, que não conseguem envolver todos os jovens. É preciso, portanto, haver propostas de maior retaguarda em relação às respostas formais. E porventura outro tipo de respostas ainda mais recuadas em relação àquelas que nós oferecemos, porque existem jovens que nem sequer para este tipo de oferta educativa estão preparados.

Estes jovens contam com algum tipo de apoio à saída?

Nós encaramos este projecto de uma perspectiva socioeducativa, cujo objectivo passa, acima de tudo, por ajudá-los a prepararem-se para enfrentar os espaços de formação nos quais possam vir a reingressar ou directamente os espaços de trabalho. Eu acredito que eles próprios, resolvendo alguns dos seus problemas e estruturando-se pessoalmente, serão capazes de responder e de se integrarem de forma capaz. Temos noção, porém, que as oficinas de formação vocacional, ao prestarem serviços à comunidade, podem assumir um papel importante nessa reintegração. E esse é um trabalho no qual estamos também apostados, o de criar uma rede de locais de estágio, trabalhando em parceria com empresas e instituições que se queiram articular connosco.

Partindo deste relativo curto período de experiência, que outros desafios se colocam a um projecto desta natureza?

Eu julgo que existem resultados muito positivos nestes quase cinco meses de trabalho. Estamos a trabalhar com 45 jovens que estavam em abandono escolar, muitos deles há três, quatro, cinco anos, que nunca haviam estado mais do que uma semana em lado nenhum. E aqui estão há cinco meses, diariamente, o que na minha opinião é um resultado absolutamente extraordinário.
Partindo daqui, penso que o principal desafio será agora estruturar melhor o nosso trabalho. Apesar de termos trabalhado neste projecto praticamente dois anos, ele foi lançado muito em cima do início do ano lectivo e tivemos, por isso, muito pouco tempo para o desenvolver. O desenho curricular, por exemplo, foi sendo aperfeiçoado numa altura em que a escola já se encontrava em funcionamento. Apesar desta contrariedade, penso que durante este ano iremos ser capazes de estruturar melhor a nossa aposta. Compreendermos melhor a nossa missão e aperfeiçoar a resposta será, em síntese, o nosso principal desafio.

A Associação para a Educação de Segunda Oportunidade tem outros projectos, nomeadamente expandir-se a outros pontos do país?

A AE2O é uma pequena associação que congrega técnicos e profissionais de educação, pessoas interessadas, que tinham este sonho, um bocadinho impossível, de abrir uma escola em Matosinhos. Ao longo destes cinco anos de existência fomos participando em outras iniciativas e desenvolvendo outros projectos, que lhe conferem uma dimensão internacional. Neste contexto, integramos não só a rede europeia de escolas de segunda oportunidade, mas estamos a ajudar a criar uma outra rede europeia de organizações que, tal como nós, trabalham com jovens em risco, realizando um trabalho de cariz cultural.
Por outro lado, e embora estejamos sediados em Matosinhos, estamos a responder a solicitações que se estendem um pouco por toda a Área Metropolitana do Porto. E sentimos que esta resposta não é suficientemente abrangente. Só em Matosinhos existiam, em 2005, cerca de 4000 jovens que tinham abandonado a escola sem o 9º ano de escolaridade. Costumamos dizer, por graça, que a este ritmo irá demorar mais de cem anos para resolver este problema, só no concelho. Não quero com isto dizer que devamos multiplicar esta resposta. É importante que se dê tempo à consolidação desta experiência e avaliá-la. Mas acho, seguramente, que precisamos de encontrar mais respostas para além das que existem actualmente.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo

 
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Edição:

Edição N.º 185, série II
Verão 2009

Autoria:

Luís Mesquita

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Luís Mesquita

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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