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O nível de vida que entendemos justo e a justiça dos equilíbrios sustentáveis

Quando todos peamos por causa da evolução desenfreada dos preços do petróleo ou, questão mais quotidiana (certamente para todos), dos preços de bens alimentares essenciais, é em função de um determinado patamar de conforto e de nível de vida, que vemos posto em causa, que fundamentalmente reagimos. Temos legítimas expectativas de não desejar que, aquilo que é um patamar de bem-estar a que conseguimos aceder, seja posto em causa.
Aquilo que não nos será tão próximo no nosso raciocínio, na nossa reacção, é que, em grande medida, o que poderá parecer estar em causa seja a impossibilidade de salvaguardar esses padrões, se entendermos, solidária ou humanamente, considerar o direito de todos os cidadãos do planeta que habitamos terem acesso a esses mesmos padrões, já não de luxúria, de excesso, mas tão simplesmente, de dignidade, aquilo que, ainda segundo os nossos padrões, passa pelo direito ao essencial à vida humana; o direito à educação, à saúde, a um nível de bem-estar que permita a afirmação de cada um e de todos.
A explicação da subida dos preços do petróleo, dos preços dos cereais, é em grande medida sustentada nas novas economias emergentes (China, Índia, Brasil, África do Sul, ?), ou seja, na capacidade desenvolvimentista destas novas economias e, consequentemente, no acréscimo de cidadãos capazes de aceder a níveis de consumo, distantes embora mais próximos daquilo a que nós, nas sociedades ocidentais estamos habituados. Seria o crescimento sustentado destas novas economias que, ao inflacionar a procura de bens, se confrontaria com uma oferta desses mesmos bens impreparada para tão grande procura e, desse modo, segundo o mais clássico princípio do funcionamento do mercado, geraria um súbito acréscimo de preços dos produtos e o seu mais difícil acesso.
Não será tão simples a explicação ? as virtudes do mercado não são assim tão inconsequentes ? mas ela levanta uma questão essencial, que é a de saber se, em definitivo, aquilo que nas nossas sociedades ocidentais entendemos ser o diapasão mínimo da qualidade de vida, uma vez extensível a toda a humanidade, permite garantir a sustentabilidade do planeta em que vivemos? Ou será mais fácil alimentar todos os modelos de solidariedade dos "ricos" relativamente aos "pobres" ? porque o mal dos outros, à distância, não nos atinge ? conquanto este exercício sossegue as nossas consciências?
Se se tomar, a título de exemplo, a produção mundial de bens alimentares, são inúmeros e suficientes os estudos que demonstram que, a actual produção alimentar mundial é mais do que a necessária para alimentar condignamente toda a população do globo[1]. E este é, tão só, o ponto de partida. Mas será inaceitável admitir que, aqueles que sempre viveram na miséria, uma vez ultrapassada essa condição, alimentem o legítimo direito de aceder a mais do que isso? Será impensável, a título de exemplo, que todos os africanos (lembro aqui todos aqueles que correm risco de vida para arribar às nossas costas europeias[2]) venham um dia, ultrapassada a fome a as doenças, a desejar dispor de um automóvel, de uma casa com água potável e energia, de electrodomésticos e conforto, de uma vida que vá além do limiar da sobrevivência?
A proclamada globalização, para não passar de proclamada a proscrita, não pode ser apenas o sinal da mais plena usurpação do mundo desenvolvido sobre o mundo em desenvolvimento (aceitemos estes chavões porque estão cifrados), tem necessariamente um reverso que é, justamente, a discussão da inaceitabilidade das gritantes diferenças, que é, justamente, todo o esforço no sentido de as superar. Se, antes daquilo que alguém designou por globalização, a equação se definia pela miséria de muitos para garantir a tranquilidade de alguns[3] (quando não, o excesso de alguns), a noção de globalização, oportunisticamente mobilizada pelos mercados financeiros (mas "sexto sentidamente" apropriada pelas tecnologias de comunicação, para não dizer ainda, "sétimo sentidamente", imposta pela precariedade dos próprios recursos naturais e ambientais), impõe compreender a sustentabilidade do mundo em que vivemos, impõe problematizar o modelo de desenvolvimento que tem sido perene. Não faz mais sentido falar em globalização - a visão do nosso planeta, da humanidade como uma e interdependente - e manter um modelo de desenvolvimento tão insistentemente assimétrico.
Não se tratará, necessariamente, de abdicarmos daquilo que conquistamos, individual e colectivamente. Trata-se, provavelmente, de construir um outro olhar, menos egocentrado, mais cidadão na medida em que tal encerre a ideia de uma cidadania global, trata-se de perceber o significado da expressão "cidadão do mundo", e trabalhá-la consequentemente, não necessariamente para além da extensão do bairro (porque é sempre o mundo próximo e significativo), mas seguramente para além da extensão do exercício cidadão (esse sim, muito para além do espaço do bairro).
Dir-me-ão, que espaço para esta reflexão num jornal sobre educação? Todo. Todo sem pestanejar. Seria certamente inconsequente não conter no espaço educativo, no acto educativo aquilo que, embora o possa transcender, seguramente o determina. Esta questão não é do domínio "então estás para aí com essas moralidades, e o que é que tu já fizeste?", abordagem muito judaico-cristã do "exemplo"; esta questão coloca-se no tempo, numa temporalidade que transcende a(s) nossa(s) vida(s), mas que é, pode ser provavelmente determinada por ela(s).

[1] - Como já em 1987 a World Comission on Environment and Development sustentava, o problema não se colocava sob o ponto de vista da produção mundial de bens alimentares, mas sim sob o ponto de vista de onde era produzida a a quem, através de que canais, essa produção era dirigida (in Our Common Future, Oxford, Oxford University Press).

[2] - Leia-se, a este título, o belíssimo e cru (menos pela sua incompletude, mais pela crueldade das situações que retrata) trabalho jornalístico de Paulo Moura, Passaporte para o Céu, de 2006, Edições Dom Quixote.

[3] - Consulte-se, a este título, a obra de Jean-Christophe Rufin, L'Empire et les Nouveaux Barbares, de 2001 (JC Lattés, Paris, 2ª Ed.).
Henrique Vaz

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 182
Ano 17, Outubro 2008

Autoria:

Henrique Vaz
Assistente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Henrique Vaz
Assistente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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