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Discussão e acção colectiva dos professores é a única garantia do reforço da sua autonomia

Licenciado em Pedagogia e em Educação Artística pela Universidade Federal de Pelotas, no Brasil, Álvaro Hypólito é Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutorado em Currículo pela Universidade de Wisconsin, sob a orientação de Michael Apple. Foi professor e director de uma escola pública e desde há 22 anos que é professor do Departamento de Ensino da Universidade Federal de Pelotas, onde lecciona e pesquisa sobre Trabalho Docente e Políticas Educativas e Curriculares. É um dos editores da revista Currículo sem Fronteiras. Tem publicado diversos artigos, livros e capítulos de livros em torno destas questões. Em Portugal, organizou, sob a chancela da editora Didáctica, o livro "Educação em Tempos de Incerteza". Álvaro Hypólito esteve recentemente presente no encontro "Educação Pública em Debate", que se realizou na Universidade do Minho no final de Maio deste ano.Foi desse encontro que nasceu a conversa que faz este nosso Ponto de Encontro.

Aquilo que designa por "Novo Gerencialismo", que ocorre fundamentalmente num quadro de orientação neoliberal, está a reconfigurar a concepção de Estado e das políticas públicas. O que caracteriza principalmente este novo tipo de gestão?

Em primeiro lugar é preciso dizer que este Novo Gerencialismo ocorre num ambiente de globalização, de reestruturação do capitalismo, de constituição da terceira revolução técnico-científica e de expansão mundial do mercado. É neste contexto que o modelo do Estado Social é colocado em questão e se começa a delinear uma economia neoliberal que impõe a necessidade de reestruturar o Estado para que as finalidades do mercado capitalista pudessem ser alcançadas plenamente.
Em linhas gerais, o Novo Gerencialismo significa uma reconfiguração do público e do privado, podendo significar a pura privatização do Estado e dos seus serviço, o enfraquecimento das fronteiras entre público e privado ? as parcerias público-privado -, ou a transferência de responsabilidades que eram do Estado para as comunidades locais.
O modelo gerencialista do Estado seguiu a lógica construída para a reorganização industrial, baseada no modelo pós-fordista, caracterizada pela busca incessante da eficiência, da flexibilização, da redução de custos, da competência e do produtivismo. É um novo modo de coordenar e refazer as instituições do Estado, criando novas formas de gestão para a sua reorganização.
Este modelo de Gerencialismo tem sido também chamado de Nova Gestão Pública por oposição à "velha" administração pública. É uma reestruturação do Estado que envolve realinhamentos de muitas das relações entre Estado e cidadão, Estado e economia, o Estado e as suas formas organizacionais, com aplicações do Pós-fordismo como modelo de organização das instituições públicas incluindo novos processos gerenciais específicos.

Em traços gerais, que implicações tem este novo tipo de gestão no sector educativo ? nomeadamente no que se refere ao controlo da gestão das escolas?

As implicações para o sector educativo são inúmeras, umas mais subtis outras mais directas e explícitas. As estratégias desenvolvidas para a obtenção de sucesso deste modelo são de duas ordens: centralização e descentralização.
Quanto à centralização, pode-se dizer que o Estado define com muito poder o que deve ser ensinado nas escolas e quais as metas a serem atingidas. Isso é feito por meio da definição nacional dos currículos, controlo sobre materiais didácticos, políticas de formação docente e amplos sistemas de avaliação, por um lado, e pela implementação de modelos gerencialistas ? como são exemplo as novas formas de contratação de pessoal -, por outro lado.
No que se refere à descentralização, pode-se identificar formas de desresponsabilização do Estado através, nomeadamente, da transferência de responsabilidades para as comunidades locais, tais como administração directa das verbas da escola, como é o caso do Brasil, contratação de professores temporários, etc. Enfim, formas de gestão que passam uma ideia de autonomia, mas que, na prática, não passa de uma pseudo-autonomia.
Na prática, a gestão escolar, imaginada como autónoma, é definida alhures, a partir das metas de desempenho escolar, dos sistemas de avaliação docente e avaliação de resultados escolares, das políticas curriculares e políticas de formação docente, certificação e contratação de professores.
Os professores e os gestores locais têm pouco poder de decisão embora possam imaginar que possuem autonomia para decidir os rumos das suas escolas. Isso é possível, evidentemente, mas implica uma nova atitude e um novo projecto de escola que os docentes e as comunidades podem construir colectivamente. Obviamente, este tipo de alternativa deverá procurar caminhos bastante diferentes dos que estão a ser impostos pelo gerencialismo.

Em que medida podem estas medidas condicionar o trabalho dos professores e cercear a sua própria autonomia?

Com certeza que o trabalho dos professores tem sido afectado. As formas de controlo têm aumentado e o cerceamento às formas de autonomia escolar tem também aumentado. Nas nossas pesquisas, como estas que eu e os meus colegas pudemos apresentar aqui em Portugal, na Universidade do Minho, fica patente que o gerencialismo na administração da educação tem afectado o trabalho docente. Estes efeitos podem ser identificados nos processos de intensificação do trabalho ? com jornadas mais intensas, com novas tarefas e mais burocracia, e nas formas de precarização do trabalho ? no trabalho temporário, na redução do número de professores efectivos na carreira, turmas com mais alunos, bem como nas formas de controlo sobre o trabalho ? certificação, sistemas de avaliação e controlo directo tipo câmaras nas salas de aula.
O aumento da incidência de doenças ocupacionais é muito significativo. O stress, o burnout, o mal-estar docente são parte do quotidiano escolar. A questão importante é que quanto mais o Estado parece estar a afastar-se do quotidiano escolar mais ele está presente. Os sistemas de avaliação em grande escala, as definições curriculares nacionais, as definições sobre as políticas de formação docente, as modificações para a carreira docente, os processos de avaliação docente, entre outras coisas, fazem com que o Estado exerça um controlo sobre os professores e o quotidiano escolar nunca antes visto. O Estado é um ausente cada vez mais presente.

Acha que a médio prazo se corre o risco de este novo gerencialismo ser uma porta aberta à progressiva privatização da completa gestão das escolas? De que forma é possível garantir a autonomia dos profissionais do ensino neste quadro político?

Sem dúvida que este novo gerencialismo é uma abertura a formas progressivas de privatização da gestão escolar. Porém, no campo educativo, tal como em outros sectores públicos, este processo nem sempre assume a forma clássica de privatização, traduzido na venda de património e na transferência de serviços que passam a deixar de ser administrados e/ou prestados pelo Estado, como é o caso de empresas estatais e de serviços de comunicações, energia, etc.
No campo educativo também é possível alguma forma de privatização, como já se viu em alguns lugares, mas a forma predominante é aquela que alguns autores chamam de quase-mercado, na qual não ocorre uma privatização propriamente dita, mas uma flexibilização das relações entre público e privado, por intermédio de formas de parceria, terciarização de serviços, entre outras possíveis. Ou seja, não chega a existir uma venda ou controlo directo da administração pelo sector privado, mas a lógica de mercado é transferida para o sector público e a sua influência passa a ser mais objectiva nas relações internas das instituições públicas.
Nesse sentido, no Brasil, estão a ocorrer várias acções que podem ser enquadradas nesta modalidade. Há distritos educacionais ou Secretarias Estaduais de Educação que contratam fundações, ONGs ou empresas para desenvolver acções educativas, testar modelos de ensino, supervisionar e implementar projectos, assim como avaliar o trabalho das escolas. Exemplo deste processo é também a prática de contratação temporária de professores ? que, no entanto, podem prolongar-se ao longo de vários anos - de forma precária, sem garantias laborais como pagamento de férias, décimo terceiro mês, e assim por diante.
É difícil que se possa garantir a autonomia dos profissionais do ensino num processo desta natureza. A única saída que vislumbro é a que se baseia na discussão e acção colectiva dos professores, organizados em sindicatos que queiram efectivamente discutir esta situação e encontrar alternativas colectivas. A Escola da Ponte, por exemplo, é uma experiência interessantíssima, não para ser copiada mas para ser discutida como um modelo possível.

Para terminar, uma questão mais generalista: a escola só é pública na medida em que pertence ao Estado? Isto é, uma escola estatizada será o mesmo que uma escola com participação pública? Perante as transformações que têm ocorrido, qual lhe parece o modelo mais adequado?

O grande dilema desta questão é como garantir que algo provido pelo Estado possa ser gerido pela sociedade civil. Por um lado, nós sabemos que uma escola estatizada não é garantia de participação pública. Por outro lado, sabemos também que se o Estado não garantir este serviço não será o sector privado que irá garantir o acesso à educação de qualidade para todos ou garantir formas de participação pública.
Marx, na crítica ao Programa de Gotha, já questionava os seus pares sobre esta questão. O problema centra-se em fortalecer a sociedade civil e as suas formas organizativas para que ela garanta para si o controlo sobre a democracia das instituições públicas e uma gestão democrática para as escolas. Contudo, o Estado não se pode eximir de garantir e prover o direito à educação. Este é um dos dilemas do nosso tempo.
Perante as transformações actuais, penso que o modelo a seguir deverá basear-se no aumento e radicalização da participação democrática local a fim de impor ao Estado o desejo da sociedade civil. O campo educativo é uma arena de conflitos, é um território de contestação, e penso que é nisso que se deve investir, assumindo práticas cada vez mais autogestionárias e democráticas na educação e nas escolas.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 181
Ano 17, Agosto/Setembro 2008

Autoria:

Álvaro Hypólito
Licenciado em Pedagogia e em Educação Artística pela Universidade Federal de Pelotas, no Brasil.
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Álvaro Hypólito
Licenciado em Pedagogia e em Educação Artística pela Universidade Federal de Pelotas, no Brasil.
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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