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Uma infância inquieta?

Escrevo este texto instigada por uma série de notícias, publicadas em jornais brasileiros, de que a FDA norteamericana[1] alerta para os paraefeitos da administração de psicoestimulantes às crianças (mas também adultos) com distúrbio de atenção e hiperatividade[2]. Chama atenção nessas notícias a forte indicação de que problemas cardíacos sérios possam estar sendo desencadeados ou agravados pelo uso contínuo e de largo prazo daquele tipo de fármacos.
Não se trata aqui de fazer um balanço dos prós e contras da referida medicação, e decidir se ela deve ou não ser prescrita a milhões de crianças pelo mundo. Não me encontro entre os experts que têm como objeto de seus saberes especializados "colocar nos trilhos" contingentes crescentes de crianças e jovens que encontram dificuldades para ajustar-se ao mundo da escola.
Proponho apenas uma breve conversa sobre estratégias utilizadas, na contemporaneidade, para produzir os tipos de comportamento adequados ao "confinamento escolar". Podemos traçar uma seqüência histórica nos modos de conceber as crianças, de estabelecer regras de conduta e prescrições aos mestres para obter submissão e ajustamento aos regramentos daquela instituição. Não passamos da rígida imposição disciplinar da escola tradicional para outra ? em que fomos advertidos sobre a necessidade de respeitar ritmos, interesses e necessidades das crianças e jovens ? sem que rios de tinta corressem para demonstrar que aprendemos melhor quando algo nos cativa, quando podemos fazer escolhas, trocar opiniões, produzir prazerosamente.
No entanto, seja qual for a prática pedagógica das escolas, jamais atingimos a todos, há sempre um resíduo de inquietos, desatentos, respondões, à margem - alguns aos quais parecemos não alcançar. Por outro lado, também, docente algum encarna à perfeição o/a professor/a tradicional, ou aquele/a que não retorna às práticas impositivas, quando o "ensino centrado no aluno/a" com as suas práticas de maior autonomia vêm a falhar. Trago tal argumento para dizer o já sabido: não existem métodos infalíveis ou estratégias disciplinares que mesmo valendo-se dos mais bem urdidos estratagemas capturem a todos, coloquem a todos/as, indistintamente, na senda da docilidade e da produtividade.
É nesta constatação que se encaixam as crescentes queixas da escola sobre a inquietação, o burburinho constante, a incapacidade de certas crianças de seguir ordens, o açodamento na realização do proposto (ou a incapacidade de completar as tarefas no tempo previsto). Das lamentações, passa-se a prestar atenção nos que não se encaixam no "previsto": descrevendo em dossiês, em fichas de observação, em documentos de avaliação a característica dessas condutas "fora da norma". Os serviços de orientação educacional passam a se ocupar desses dissidentes da ordem, a conferenciar com mães e pais, a produzir registros em livros de ocorrências, a encaminhar para os serviços especializados aqueles com os quais não se sabe mais lidar. A estas crianças já chamamos de "desatentos", "indisciplinados", "bagunceiros". Hoje lhes inventamos um rótulo: são os "portadores de déficit de atenção" ou os "hiperativos". Sobre eles já escreveu nesta seção a professora Marisa Vorraber Costa. Crêem alguns que seus comportamentos peculiares compõem uma síndrome, descrevendo seus sintomas numa check list para ajudar a identificar marcas dessa "disfunção". De posse destes instrumentos, ficou mais fácil nomear os "alunos-pacientes" com TDAH. De fato, a sociedade contemporânea produziu a síndrome, descreveu-a, deu-lhe um nome e busca atribuir-lhe uma explicação com argumentos "científicos": ela se deveria a um mau funcionamento na química do cérebro.
Minha provocação, porém, se faz noutra direção. Já paramos para pensar que a escola vive num mundo em que outros ritmos, outras relações espaço-temporais vieram a ganhar proeminência; em que podemos, quase que de imediato, saber o que se passa no mundo; em que as conexões via Internet e TV nos colocam instantaneamente em contato com os últimos acontecimentos de todos os tipos; em que as crianças convivem com um frenesi de imagens e uma miríade de estímulos simultâneos e concorrenciais; em que cartoons, videoclips, música eletrônica "latejam" numa cadência ultra-rápida, misturando imagens, sons, cores, movimentos?
Nesse mundo em que tudo parece provisório, precário e fora de controle (coisa que aliás o mundo sempre foi...), atrevo-me a perguntar: Em que medida a escola tem se questionado sobre sua organização espaço-temporal? Até que ponto estamos conscientes dos longos tempos de silêncio e imobilidade que queremos impor às crianças? Como temos resolvido os impasses que a inquietude e o desassossego provocam ao coletivo, sem apelar para o puro e simples "abafamento"? Será que as conexões neuronais é que entraram em curto-circuito ou é a articulação escola-realidade que precisa ser posta sob escrutínio. A resposta cabe a nós.

[1] FDA ? Food and Drug Administration.
[2] Apresentado aos leitores, neste mundo de siglas, como TDAH.

Maria Isabel Edelweiss Bujes


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 181
Ano 17, Agosto/Setembro 2008

Autoria:

Maria Isabel Edelweiss Bujes
Doutora em Educação, Pesquisadora da Infância.Professora do Programa de Pós-Graduação Em Educação, Universidade Luterana do Brasil, PPGEdu/ULBRA, doutora em educação, pesquisadora da infância.
Maria Isabel Edelweiss Bujes
Doutora em Educação, Pesquisadora da Infância.Professora do Programa de Pós-Graduação Em Educação, Universidade Luterana do Brasil, PPGEdu/ULBRA, doutora em educação, pesquisadora da infância.

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