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Maria Helena Vieira da Silva e os labirintos da sua pintura (1908-2008)

Na expressão tão citada de Malraux de "a arte transformar a vida em destino" se consubstancia todo um programa ou entendimento do sentido estético que, pelos múltiplos caminhos da arte, dá origem quase sempre, nos exemplos de primeira grandeza, a essa coerência e verdade que os artistas prosseguem pela vida fora na expressão firme da obra que realizam. Na pintura ou na música, na literatura e no resto: isso se sabe, e é dos livros.
Mas, mesmo sabendo-se que não se pode entender a arte desligada da própria vida, levantam-se ainda alguns equívocos na compreensão estética de quem se esforçou por criar o seu imaginário pessoal ou, no lento correr dos anos, desejou consolidar essa gramática de ser único o caminho a percorrer, de ser própria a arte concretizada, de serem inconfundíveis os traços, formas, cores e elementos estruturais dessa arte. Por isso, quando lembramos ou falamos, por exemplo, dos cavalos de Picasso, logo sabemos que esses cavalos se não confundem com os das telas de Ucello ou de Marini, assim como não confundimos os labirintos ou cidades imaginárias de Maria Helena Vieira da Silva com os pormenores deliberadamente procurados da pintura de Brueghel ou de Guarini. E desse modo se entende ou deve entender, como disse Vergílio Ferreira, que a arte é sempre essa forma absoluta de expressão que "acrescenta a todo o real a transposição para o domínio do imaginário e emotivo", porque nesse desdobramento do real existe um duplo jogo entre o que é visível e indizível, ou seja, prevalece esse fio subterrâneo de transmissão que faz com que a arte se concretize nas suas próprias formas, mas é pela emoção que sempre começa a existir. E estes versos de Pessoa isso mesmo nos confirma - "Tudo o que em mim sente está pensando" - e nesse "excesso de real" a arte faz compreender as raízes mais fundas do que sobrou do conhecimento da vida e do mundo. Claro que se não entende ou aceita a arte que não passe por dentro das malhas escondidas ou subjectivas do próprio dizer e do sentir, mas é esse talvez o segredo (se porventura algum segredo existe) de se saber hoje que a pintura de Vieira da Silva, na multiplicidade formal que a define e na coerência em que se individualiza, se ergue como uma das expressões maiores da moderna pintura deste século. Desde os seus primeiros passos na aventura da arte (tivera antes o sonho de na "Grande Chaumière" parisiense ser escultora e foi então discípula de Bourdelle), a sua pintura pouco a pouco se consumou nesse trajecto pessoalíssimo e original de enredar nas telas os fios sabiamente tecidos pela memória longínqua e nunca perdida da infância e adolescência vividas em Lisboa. E um dos primeiros admiradores dessa obra, no começo de cumprir um "programa" de toda a vida em muitos e muitos anos de afirmação como pintora, lembramos ter sido António Pedro, poeta, pintor, homem de teatro e interventor cultural no melhor sentido, que em 1935 promoveu em Lisboa a primeira exposição de Vieira da Silva e soube saudá-la deste modo, um pouco à maneira de Almada sobre a exposição inicial de Amadeo, em texto então publicado no entusiasmo e certeza dessa sua descoberta: "Por ora e em Portugal, a arte de Maria Helena Vieira da Silva é única. Cabe-lhe a virtude e glória desse isolamento". E por aí se traçou esse mundo pictórico cruzado de linhas verticais e horizontais, onde o espaço e o tempo dialogam constantemente numa inconfundível "poesia dos sonhos", ou pintura feita de silêncios e de abismos, na contemplação da matéria que sempre foi, aos olhos da pintora, essa espécie de instrumento que vibra e regista todos os sismos interiores, por ser para si mais importante a estrutura do que a cor e esta sobretudo ser utilizada como atitude de prolongar o mesmo diálogo com o visível pela sublimação dos sentidos ou na forma transitiva e obsessiva de os olhos pousarem nas suas telas e não ser possível, como Vieira da Silva um dia disse, "falar sobre uma coisa que é para se ver". Porque esse persistente e continuado diálogo de manchas e linhas, formas e cores se entrelaça, como verdadeiro oficiante da luz, nos planos desdobrados de ser uma pintura diurna e nocturna, como já referiu José-Augusto França, e assim se ergue e consolida como nesses "espelhos secretos" em que tudo se revê e se projecta, na força de um lirismo singular e nos excessos de coragem que sempre revelou pelo modo firme de prosseguir nesse caminho. E por essa sua arte de pintar se atravessam todos os sonhos de pontes, terraços, gares, labirintos, bibliotecas, jogos de damas ou xadrez, baptistérios, labirintos de ruas e cidades, talvez no propósito de evidenciar essa procurada e reafirmada ambiguidade diante do nosso olhar, no calor e entusiasmo de não estarem fechados sobre o mundo e se configurarem, ainda na afirmação de J.A. França, como "esse lugar da crise mítica do nosso tempo, que se arrisca ir preparando o lugar-espaço de novos mitos de que venha a ser capaz a nossa necessidade". Mas, por entre a fantasmagórica visão das cidades que se espelham nas telas de Vieira da Silva, lugares de saudade e memória que ficaram longe, nesse modo de a arte ser quase uma pintura da pintura ou a arte possível do mesmo diálogo a todo o instante renovado na sua pintura, como um "impressionismo mágico" matizado de perspectivas crucificadas pela paixão de tudo se consumar em firme e rigorosa expressividade pictórica.
Ora, na passagem dos cem anos de nascimento de Vieira da Silva, acontecido no mesmo dia e mês de Pessoa (13 de Junho) com um intervalo de vinte anos. Cabe-nos declarar que toda a sua pintura se revela como apelo a esse combate indestrutível de ter transfigurado em destino próprio os espaços ou os abismos da memória e da imaginação e, no fim de todas as contas, no dizer de Eduardo Lourenço, ser sobretudo a "obra de um Poeta capaz de tecer com o tempo a frágil eternidade que ele nos consente". Ainda e sempre na lembrança de pelas ruas e paredes de Lisboa e Porto, nos dias alvoroçados de Abril de 74, terem andado os cartazes de Vieira da Silva, na homenagem e grito de proclamar que a Poesia Está na Rua.

Serafim Ferreira


  
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Edição:

N.º 178
Ano 17, Maio 2008

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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