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Portugueses e galegos, irmãos

Tive o privilégio de conviver com o Dr. António José Saraiva. Lembro-me de num dia em que passeávamos pelas ruas de Paris lhe ter perguntado: " Doutor, o que é que o Afonso Henriques sabia de História?". Ele começou: "O Afonso Henriques era neto do Imperador Afonso VI, que conquistou Toledo.?." . Os espanhóis estudam a História da Península Ibérica com continuidade desde os romanos. Assim, na História de Espanha aprendem que o rei Afonso V de Leão morreu, em 1029, junto às muralhas de Viseu e que Lisboa foi conquistada aos mouros, pela primeira vez, em 1093, por Afonso VI, que dominou a cidade por um curto período. Quem aprende nas nossas escolas onde se ignoram mil anos da História do nosso território fica com a impressão de que Viriato era uma espécie de tio do Afonso Henriques. Por arrastamento, ignoramos o nosso passado moçárabe, e não sabemos que houve um quase embrião de estado moçárabe em Coimbra - é nesta incultura histórica que se situam livros como o do Doutor Freitas do Amaral sobre o Afonso Henriques.
Estimulado por António José Saraiva passei a olhar com bastante atenção os textos sobre o que se passou no território português (e em toda a Península Ibérica) antes da nacionalidade. Tornei-me mesmo, nesta matéria, um cidadão com uma cultura bastante superior à média. Assim, eu já sabia que por volta do ano 1000, Almançor, poderoso chefe militar do califado de Córdova, centro da Espanha Muçulmana então ainda unificada, tinha atacado Santiago de Compostela, donde trouxe os sinos das igrejas transportados a dorso de cristão até Córdova. O que não sabia, e aprendi há dias - quando comprei por um euro num alfarrabista o número 3 (de Janeiro de 1979) da revista "História" e nele li um artigo em que António José Saraiva defende que a "ideia de Portugal" pode remontar ao século IX - foi que, na referida incursão até Santiago de Compostela, Almançor contou com o apoio dos condes cristãos "portugueses" da região de Coimbra. Quando Mário Soares diz, como disse há dias, que os portugueses e galegos são irmãos, tem toda a razão. Até andámos a atacar-nos uns aos outros, logo no início, como é próprio de irmãos.
Este artigo é escrito num momento em que me chega a notícia de que a revista "História" está em risco de acabar. Se tal suceder é uma grave perda para a cultura portuguesa. Há hoje a ideia de que Cultura é Informação, mas o excesso de Informação pode matar a Cultura. A Cultura de uma geração é, essencialmente, a centena de obras que essa geração leu. A "História da Cultura em Portugal" de António José Saraiva e a "História da Literatura Portuguesa" que escreveu em conjunto com Oscar Lopes contribuíram possivelmente mais para a cultura de uma geração que todos os textos que os nossos estudantes encontram hoje na Internet. O progresso não deve ser recusado, mas deve ser bem utilizado. Uma vez que o Ministério da Educação decidiu instalar (e bem) computadores em todas as escolas, devia também criar um site em que os professores e estudantes tivessem acesso a textos fundamentais para o nosso ensino que hoje só se encontram nos alfarrabistas. A "História da Literatura Portuguesa" e o texto referido da revista "História" são exemplos. Permito-me indicar um outro. Também num alfarrabista, comprei, há dias, também por um euro, um livro admirável: um exemplar da 17ª edição, de 1928, de uma Gramática Portuguesa para o Ensino Primário, de Ulysses Machado, ilustrada com 80 gravuras. É um livro que se folheia com um imenso agrado. Nunca tinha visto, em parte alguma, uma gramática ilustrada com figuras. Abro-o e vejo, por exemplo, na página 66, três figuras com as legendas: "fomos crianças", "somos rapazes", "seremos homens". E na página seguinte, duas figuras com as legendas: "Tocava a música quando chegamos", e "Quando chegamos já a música tocara". Que maneira admirável de ensinar os tempos dos verbos!
O Governo brasileiro criou um site www.dominiopublico.gov.br onde podem ser encontradas milhares de obras da literatura em língua portuguesa. Dizem-me que este site tem sido pouco usado e que a sua continuação está em risco. Se os organismos culturais dos PALOPs não se empenharem na sua defesa, então, o que é que andam a fazer? Se este site não continuar, se a revista "História" acabar e se o nosso Ministério não criar um site para as obras esquecidas com interesse para o nosso ensino, para nos informarmos sobre o que se passou no nosso território antes da nacionalidade poderemos, ainda, felizmente, contar com as revistas de História galegas.

Nota:
Uma 1ª versão deste texto foi publicado no jornal "SOL" de 13 de Outubro 2007.


  
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Edição:

N.º 172
Ano 16, Novembro 2007

Autoria:

António Brotas
Professor Jubilado do Instituto Superior Técnico
António Brotas
Professor Jubilado do Instituto Superior Técnico

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