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Apontamento

Carta Aberta a João Paraskeva

Caro Professor João Paraskeva
Que boa surpresa me reservava a Página da Educação deste mês, lida tardiamente.
Sem o conhecer, não posso deixar de o felicitar pelo seu artigo e de lhe dizer da minha identificação com as suas preocupações. Uma preguiça endémica para produzir texto escrito, não sobreviveu à leitura do seu estimulante texto pelo que, prosaicamente, aqui lhe envio o pequenino texto que aconteceu de imediato, à míngua de poder conversar consigo sobre um assunto sobre o qual tenho uma tão grande paixão quanto a minha esclarecida e assumida ignorância.

Rosa Soares Nunes
16/07/2007

Não se é marxista tão só por se ter lido a Marx e Engels já que o equipamento cognitivo que nos fornece esse grande instrumento de análise do capitalismo pode, funcionalmente, usar-se "descomprometidamente" ou num comprometimento estratégico ao seu uso perverso, no terreno das consequências práticas. Nessa análise, perpassa a expressão do comprometimento numa escrita ricamente alegórica, numa obra que consigna uma tal chamada à nossa condição de responsabilidade com o sofrimento humano que cada página nos confronta com a angústia da nossa inabilidade para, como professores, irmos além de (quando o vamos) partilhar essa angústia, ao nível de consequências (práticas e teóricas) colectivas. É essa condição emocional que imprime à obra de Marx uma actualidade endógena de racionalidade e de razoabilidade analítica que, de certo modo, retira sentido à tão propalada necessidade de actualização, como se ela vivesse de outra coisa que da permanente reavaliação analítica dos desenvolvimentos do que põe sob mira e, logo, da arquitectura de uma agência em conformidade.
Que significados esconde essa obsessiva preocupação de actualização de uma teoria que não vive de outra coisa que dessa permanente actualização? A análise desses desenvolvimentos pressupõe o seu conhecimento e consideração, não separando os fenómenos do contexto em que ocorrem nem disciplinarizando, redutora e intencionalmente, retirando sentido explicativo ao que só é compreensível na complexidade da sua totalidade.
A ruptura com uma filosofia especulativa, elevando a prática ao lugar de legitimação da teoria, é a ruptura com uma visão do mundo que em Marx se afirma na coerência de não desligar a sua monumental produção teórica de uma incansável participação na organização da acção esclarecida dos trabalhadores.
Não se é marxista por se abordar, descomprometidamente, o pensamento de Marx e Engels, reduzindo oportunisticamente a um racionalismo redutor essa análise do Sistema Capitalista, quantas vezes, com ele favorecendo a criação de condições de desenvolvimento e recriação da "acumulação sem fim" de capital, passando racionalmente ao lado dessa dimensão emocional de incómoda proximidade do sofrimento humano, desencadeado por relações desumanas impostas por este criativo modo de produção, capaz de mercadorizar as nossas vidas e os nossos sonhos. Isso, a direita sabe fazer, com isso erigindo, não a condição marxista capaz de ver no Manifesto Comunista muito mais do que um grito do racional, mas as condições de uso dos instrumentos de análise que a teoria marxista fornece para a obliteração da mais leve manifestação das consequências práticas de uma compreensão e vivência marxistas. No que, estrategicamente, só usando o marxismo podem ser consequentes anti-marxistas.
Continuamos a fazer uma análise seca (na presunção de rigorosa, esquecendo que o reducionismo objectivista, sendo inimigo da consideração da complexidade da totalidade, é intrinsecamente contrário à objectivação) de uma obra, toda ela perpassada por emoção e sentimento. Dignidade "de que se faz a vagarosa teimosia dos sonhos", como diria o incontornável materialista dialéctico Carlos de Oliveira.


  
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Edição:

N.º 172
Ano 16, Novembro 2007

Autoria:

Rosa Soares Nunes
Professora
Rosa Soares Nunes
Professora

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