"Hoje a dominação eterniza-se e amplia-se não só mediante a tecnologia, mas como tecnologia; e esta proporciona a grande legitimação ao poder político expansivo, que assume em si todas as esferas da cultura. Neste universo, a tecnologia proporciona igualmente a grande racionalização da falta de liberdade do homem e demonstra a impossibilidade 'técnica' de ser autónomo, de determinar pessoalmente a sua vida. Com efeito, esta falta de liberdade não surge nem irracional nem como política, mas antes como sujeição ao aparelho técnico que amplia a comodidade da vida e intensifica a produtividade do trabalho. A racionalidade tecnológica protege assim antes a legalidade da dominação em vez de a eliminar e o horizonte instrumentalista da razão abre-se a uma sociedade totalitária de base racional"[1] Vale a pena recordar estas palavras de Marcuse numa época em que, pelo país, andam ministros em corrupio a distribuir computadores pelas escolas, e o governo promove e patrocina shows comerciais sobre quadros interactivos com pupilos contratados para o efeito. Na verdade, esta tecnofilia governativa pode ser reconduzida à ideia que Marcuse expôs nos anos 60 e que Habermas, seu comentador, desenvolverá um pouco mais tarde: a de que, nas sociedades avançadas, a técnica e a ciência funcionam como ideologia ao proporcionarem e garantirem, como defende Marcuse, "a grande legitimação ao poder político expansivo". A questão, bem entendido, não é saber se as escolas precisam ou não de computadores, ou de quadros interactivos, nem tão pouco discutir os benefícios da introdução alargada dessas ferramentas nas práticas de ensino e aprendizagem desde o ensino básico. A questão é: porque precisam as escolas de visitas ministeriais transformadas em autênticos "potlatch" tecnológicos? A minha resposta é: as escolas não precisam, mas o marketing político sim. A imagem de um governante oferecendo portáteis ou visitando uma imaculada sala de aulas equipada com computadores só pode trazer benefícios: nem sequer é preciso dizer nada, os objectos mostrados já dizem tudo, são modernos, ou melhor, levam a modernização àquelas pessoas e àqueles sítios pelas mãos daqueles modernizadores. No mesmo dia em que termino a escrita deste texto um leitor do Público escrevia isto numa das "Cartas ao Director": "Na minha escola (...) não há grande falta de computadores. O problema desta escola é que, no ano passado...".[2] De seguida, o leitor fala de casas de banho fechadas por falta de arranjo, chuva nos pavilhões e no ginásio e falta de material para os laboratórios, e termina, com ironia, pedindo a um governante que passe por lá a oferecer o que faz mesmo falta. É aqui que é necessário voltar a Marcuse quando ele diz que "a tecnologia proporciona igualmente a grande racionalização da falta de liberdade do homem e demonstra a impossibilidade 'técnica' de ser autónomo, de determinar pessoalmente a sua vida". A tecnofilia como ideologia governativa, racionaliza essa falta de liberdade que consiste em dizer paternalmente - tomem lá o que vos dou, que eu é que sei do que é que vocês precisam ? e expõe à vista de todos as contradições da nossa modernidade (sempre) inacabada. Repito: não estou a discutir os benefícios destas tecnologias para o ensino e a aprendizagem, pese embora eles só possam ser avaliados a partir das formas como estão a ser integrados na cultura organizacional das escolas. Creio ainda que, no domínio das competências em informática e em usos pedagógicos de ferramentas informáticas, há muito a fazer. Como qualquer pessoa compreende a mera instalação de uma rede informática não garante que ela seja efectivamente aproveitada e potenciada, além de que exige recursos para a sua manutenção e reparação quando há avarias. Mas sejamos optimistas: quando a rede e o material informático da escola do leitor do Público se avariar, ou tornar obsoleto, o canalizador e o reparador de telhados vão finalmente chegar. Li algures que há um ditado americano que diz "a um homem com um martelo, tudo parece um prego"; aqui é caso para dizer, a um governante com um laptop para oferecer, tudo parecem sondagens e uma radiante caminhada em direcção à modernidade.
[1] Citação de Herbert Marcuse colhida no livro de Habermas, Técnica e Ciência como Ideologia, Ed. 70, p.49
[1] Publico nº 6379 de 16/9/07.
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