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Afirmar a diferença na prática da profissão docente

XXIX Congresso do Movimento da Escola Moderna

O Movimento da Escola Moderna (MEM) organizou em Julho passado, na cidade do Porto, o seu XXIX congresso. O encontro decorreu na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação (FPCE) da Universidade do Porto e contou com cerca de quatro centenas de participantes, que tiveram ali oportunidade para trocar experiências de práticas pedagógicas e debater algumas das questões que mais preocupam os profissionais da educação afectos a este movimento.
Na sessão de abertura, Sérgio Niza ? fundador e ex-presidente da direcção do MEM, recentemente substituído neste cargo por Rui Trindade, professor e investigador da FPCE (ver entrevista na p. 28), denunciou algumas das medidas que a actual equipa do Ministério da Educação tem vindo a assumir, criticando em particular aquilo que considera, na sua opinião, contribuir para perturbar o desenvolvimento e consolidação das associações pedagógicas de professores, sem esquecer o retorno à valorização dos exames como instrumento de avaliação ou à revolução retrógrada a que o Ensino Especial tem vindo a ser sujeito.
Ariana Cosme, professora da FPCE e investigadora do Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE) desta faculdade, referiu-se, na conferência que se seguiu, intitulada "Ser professor numa escola em tempo de incerteza", à necessidade de reflectir acerca dos desafios, dos sentidos e da natureza da acção profissional dos professores no mundo contemporâneo, tarefa que, na sua opinião, carece de uma redefinição do trabalho docente.
Alertou, no entanto, que esta reconfiguração não se deverá processar de forma tecnocrática, mas antes num quadro de racionalidade pedagógica democrática e baseada nos princípios de afirmação da escola pública, sublinhando ser indispensável que "os professores se afirmem como autores da sua profissionalidade enquanto condição, quer da transformação da escola como instituição educativa, quer da sua afirmação como grupo profissional".
Aludindo à experiência dos professores do MEM e ao seu contributo na redefinição do papel do professor, Ariana Cosme afirmou que, mesmo não podendo ser universalizada, ela pode ser entendida como uma "referência" pelos seus contributos estruturantes. Isto, explicou, na medida em que a prática do MEM garante a congruência entre os princípios e as finalidades que sustentam a acção educativa e valoriza a necessidade de a escola se afirmar como um contexto democrático, o espaço de autonomia dos professores e a reflexão docente como condição da co-construção do conhecimento profissional.
Concluindo a sua intervenção, Cosme referiu-se ainda aos dois compromissos fundamentais que, na sua opinião, fazem da experiência do MEM um valioso instrumento de reflexão sobre a redefinição do trabalho docente: a "recusa de qualquer tipo de pretensão de auto-suficiência didáctica para se subordinar a intervenção dos professores à dimensão axiológica do acto educativo" e o questionamento baseado não na premissa de "como educar melhor" mas do "que significa educar".
Após este primeiro momento, o congresso foi preenchido, ao longo dos quatro dias, por mais de oitenta comunicações, concretizadas em "relatos de prática", através das quais os participantes puderam tomar contacto com experiências pedagógicas postas em prática pelos professores do MEM, versando as mais diversas temáticas: desde a "resolução de problemas no pré-escolar", ao "envolvimento dos pais na escola", à "instituição de hábitos de trabalho através da leitura e da escrita", à "avaliação como motor do processo de ensino-aprendizagem", passando por aquelas que se referiam às metodologias inerentes à prática pedagógica do MEM, como o Plano Individual de Trabalho, o Conselho de Cooperação ou a avaliação e gestão pedagógica cooperadas.

Avaliar para aprender e não para excluir
"Parece que andamos sempre atrás de modas, e a moda agora são os exames"

Para além destes momentos de partilha de experiências e de saberes, o congresso contou ainda com duas sessões plenárias, a mais relevante das quais ? tendo em conta o debate que se tem vindo a produzir sobre a pertinência dos exames e das provas de aferição ? terá sido a que se debruçou sobre o "conflito da avaliação sumativa com provas classificadas num contexto de avaliação participada", que contou com a intervenção de Esmeralda Raminhos, professora do 1º ciclo, Manuela Avelar Santos, professora do 3º ciclo, e Sérgio Niza.
Ilustrando com a sua própria prática de sala de aula, Esmeralda Raminhos apresentou o seu projecto de avaliação mostrando de que forma a planificação da aprendizagem, concretizada através do Plano Individual de Trabalho, e sobretudo a avaliação cooperada ? através da qual, trabalhando em grupo, os alunos conseguem identificar, em si próprios e nos colegas, os pontos fortes e as carências na aprendizagem ? pode funcionar como "condição para aprender mais e melhor" e não como "instrumento de selecção e de exclusão".
Uma estratégia que permite não só respeitar os diferentes ritmos de trabalho de cada aluno, explicou esta docente, como também promover o espírito de entreajuda entre os elementos da turma e a tomada de consciência colectiva dos saberes. Um contexto de trabalho que, no entanto, a partir do próximo ano lectivo, irá sofrer constrangimentos decorrentes da generalização dos exames.
Manuela Avelar Santos, por seu lado, lamentou que os processos de entreajuda, de que é exemplo a avaliação cooperada, sejam "cada vez mais uma utopia". Referindo-se à actual "histeria" vivida nas escolas a propósito da avaliação ? "parece que andamos sempre atrás de modas, e a moda agora são os exames" ?, mostrou ao longo da sua intervenção de que forma procurou subverter um "sistema que obriga a fazer a triagem entre os melhores e os piores", exemplificando com as estratégias de organização de trabalho que desenvolveu com os seus alunos na preparação para os exames.
Utilizando os exames como pretexto, esta docente procurou partilhar com eles dúvidas e dificuldades, estimulando-os a encontrar respostas, tornando públicos os critérios de avaliação das provas, contribuindo para desenvolver competências estratégicas a partir das exigências educativas dos exames, em domínios como o da análise, do planeamento e da revisão de textos, da utilização da gramática como instrumento de reflexão e de organização da comunicação oral e, sobretudo, da escrita.
As duas intervenções serviram como que uma espécie de diálogo, mostrando de que forma esta questão coloca os professores do MEM numa situação paradoxal: sem poder ignorar os exames, o que fazer sem pôr em causa os princípios que têm vindo a nortear a reflexão e a atitude profissional dos professores deste movimento?
Pegando precisamente por esta questão, Sérgio Niza forneceu pistas para o debate que se seguiria afirmando que "os verdadeiros autores da avaliação são os alunos" e que os professores se devem limitar a ser "parceiros" nesse processo. Para fazer face ao que considerou serem "instrumentos de crueldade que a sociedade impõe", Niza defendeu que os professores devem "colocar os alunos no papel de construtores" desses mesmos instrumentos, ajudando-os, dessa forma, a "apropriarem-se dos mecanismos" através dos quais irão ser avaliados. "Não é escamoteando a avaliação que conseguimos defender os alunos. É com transparência e autenticidade, desocultando o sistema", disse Niza.
Mostrando-se preocupado com a possibilidade de, já no próximo ano lectivo, os alunos do 1º ciclo do ensino básico poderem vir a ser retidos ao longo do seu percurso escolar através de provas de avaliação ? uma medida que considerou "imoral" ?, Sérgio Niza sublinhou a necessidade de o professor assumir um papel de orientador, "levantando dúvidas, interrogando e fazendo avançar". Alguém que, mais do que "ensinar-lhes os truques [para os exames], consiga pô-los por dentro do truque".

A nova geração do MEM

"Para quem saiu agora de uma licenciatura, isto é certamente uma mais valia. É com a partilha que aprendemos".

Paralelamente aos trabalhos, encontravam-se patentes duas exposições: uma delas alusiva à metodologia de trabalho do MEM e aos 30 anos de publicações ? livros, monografias e brochuras com autores e co-autores do movimento, no qual se incluía a história da revista Escola Moderna ?; outra com inúmeros trabalhos realizados por crianças de dezenas de escolas espalhadas um pouco por todo o país. Boa parte desses trabalhos consistia em livros artesanais feitos pelos próprios alunos, preenchidos com histórias criadas por eles mesmos, mostrando até que ponto o desenvolvimento da capacidade de escrita é uma das ferramentas pedagógicas mais valorizadas pelo MEM.
Percorrendo o olhar pela mostra, a PÁGINA da educação aproveitou a oportunidade para falar com algumas das professoras que participavam no encontro e procurou saber o que distingue afinal o modelo pedagógico do MEM e até que ponto contribuem para mudar a prática profissional. Curiosamente, ou talvez não, muitas delas eram jovens, mostrando que em Portugal, afinal, ainda há quem valorize experiências pedagógicas que pretendem mudar a forma de ensinar e de aprender.
Era o caso de duas recém-licenciadas do curso de Educação Básica da Universidade de Aveiro, que participavam pela primeira vez numa iniciativa deste género.
Carla Tomás, de 22 anos, já fazia uma ideia de qual era a filosofia do movimento porque teve oportunidade de trabalhar numa escola onde a orientadora de estágio utilizava este modelo pedagógico. Com o entusiasmo espelhado na face, confessou que vinha "fascinada" com o que havia aprendido numa oficina sobre o ensino da Matemática no 1º ciclo. "Para quem saiu agora de uma licenciatura, isto é certamente uma mais valia", afirmou.
Ao seu lado, Joana Ferreira, também de 22 anos, referiu que este congresso lhe havia aberto as portas para uma outra forma de encarar o ensino. "É um estímulo muito grande, porque a partir daquilo que aprendi sinto que poderei trabalhar com mais autonomia e gerar mais companheirismo e sociabilização na minha sala de aula".
Já com alguma experiência na área do ensino, Carla Santos, 31 anos, é desde há sete anos educadora de infância numa IPSS do Montijo. Tomou contacto com as ideias do MEM no curso de formação inicial que frequentou no Instituto Piaget. O "bichinho de querer saber mais" levou-a a fazer uma oficina de iniciação ao modelo pedagógico do movimento.
"O que me cativou particularmente foi a forma de estar com as crianças. As aprendizagens na perspectiva deste modelo fazem sentido porque tudo é feito com um objectivo muito concreto, e o facto de as crianças experimentarem e experienciarem tudo em que participam, partindo das próprias experiências e vivências, das suas curiosidades e dúvidas, faz com que elas estejam mais motivadas para participar nos projectos e para apreender os conteúdos que vamos ensinando". Com os outros modelos, diz, "a aprendizagem parece ficar um pouco aquém daquela que este proporciona".
Considerando a sua participação no congresso como "muito positiva", destaca sobretudo os relatos de prática que, na sua opinião, "são particularmente úteis pela partilha de experiências que proporcionam, ajudando a perceber de que forma os colegas trabalham no seu contexto, a ter mais ideias e vontade de fazer coisas". Afinal, conclui, "é com a partilha que aprendemos".


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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