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«O professor precisa de estar aberto às mudanças na sua forma de trabalhar e de agir»

MAX HAETINGER, professor e director do Instituto Criar, do Brasil, encontra-se com a PÁGINA da educação

"Aprender com interacção, reflexão e alegria" é o desafio proposto por Max Haetinger. Licenciado em Artes Cénicas e Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Brasil, Haetinger tem desenvolvido investigação sobre temas relacionados com a criatividade, a informática aplicada aos processos educativos, artes e educação física. Autor de uma dezena de livros, ministrou centenas de cursos dirigidos a educadores e professores, tendo sempre como tema de fundo o recurso à criatividade e às novas tecnologias, com o objectivo de integrar e motivar para o trabalho em equipa. É, desde 2003, director do Instituto Criar, situado em Porto Alegre, no Brasil. Aproveitamos a sua vinda à Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, onde ministrou duas pós-graduações, em teatro e em animação e gestão de projectos extra-curriculares, para saber mais acerca da sua filosofia e metodologia de trabalho.

Afirma que a criatividade é uma das chaves para o sucesso do processo de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, tem trabalhado na implementação de projectos de aprendizagem lúdica vocacionados para crianças e jovens. Em que se distingue, afinal, a sua metodologia de acção?

É uma metodologia que não faz a separação entre o momento prático e o teórico, e que se alicerça na actividade lúdica ? como a dança e o teatro ?, no movimento e na tecnologia, que fala de aprendizagem, de desenvolvimento humano e de psicologia. Estes são os elementos a partir dos quais abordo a minha reflexão.
O povo brasileiro tem uma postura muito alegre e uma relação muito forte com o movimento e com a formação audiovisual. Esse dinamismo obriga a que as aulas sejam também elas muito dinâmicas, interrompidas constantemente com acções práticas. Se o professor for o único protagonista da sala de aula terá muita dificuldade na relação com os alunos.

Tendo em conta que o contexto português é diferente, acha que a implementação dessa metodologia terá o mesmo impacto?

A educação, no fundo, é cultura, e quando não se respeita a cultura de um povo a nossa estratégia pode falhar. Eu tinha essa preocupação antes de vir para cá. No entanto, no debate inicial que tivemos com os participantes ficou patente que a forma de ser e de agir, as dificuldades dos alunos, os obstáculos relacionais entre estes e os educadores são muito semelhantes em Portugal, pelo que é possível, também aqui, pôr em prática esta metodologia. Mais ainda quando pensamos que as crianças e os jovens de hoje são talvez a geração mais globalizada de sempre: elas consomem os mesmos desenhos animados, a mesma música, a mesma moda, os mesmos livros? Em suma, o que as faz felizes ou infelizes é basicamente o mesmo.
Tendo em conta o padrão de ensino clássico que caracteriza os sistemas educativos europeus e norte-americano, lidar com esta nova geração, que quer movimento e agitação, talvez constitua uma dificuldade acrescida. No entanto, as crianças e jovens precisam apenas de canalizar a sua energia ? por vezes a sua agressividade. Esta metodologia procura fazer exactamente isso, ou seja, canalizar essa energia e agressividade.

De que forma concretiza essa metodologia, nomeadamente na sala de aula?

No Brasil, por exemplo, estamos a trabalhar o reforço da língua portuguesa com crianças do 2º ciclo. Ao invés de pegar no papel e na caneta, como seria habitual, começamos por trabalhar a ludicidade, o relaxamento ? que diminui a sinapse neurológica e facilita a apreensão do conhecimento ? dançando, cantando uma música? E só a partir daqui é que se introduz o texto que queremos trabalhar. Ao mesmo tempo que se redige, pode-se transformá-lo numa dramatização ou numa outra actividade ? na área da informática, por exemplo.
A sala de aula passa, desta forma, a ser um espaço plural, onde se trabalha trabalha-se a parte reflexiva, a escrita e a interpretação, mas onde a cada quinze ou vinte minutos há uma interrupção para que possamos resgatar o movimento, a ludicidade e a socialização através de diversos jogos e actividades. Essas acções começam aos poucos a permear a sala de aula e a narrativa parte do sujeito para o educador, e não o contrário.

Há cada vez mais quem critique essa postura e defenda o regresso aos automatismos e à memorização. Qual é o seu comentário?

Essa discussão não se trava apenas em Portugal, no Brasil também. Nós estamos a viver nesta transição de século um momento muito diferente da nossa realidade, cujo equivalente foi vivido há cerca de cem anos com a revolução industrial. Um momento que está a mudar a forma de ser, de fazer e de agir das pessoas.
A virtualidade, a era do conhecimento, o esbater de fronteiras, a velocidade da comunicação são factores que estão a propor-nos um novo mundo. As competências que nortearam o século passado e que constituíram a base da era industrial era baseadas na memorização e na repetição. Só que estas competências serão praticamente inúteis nos próximos vinte anos. Tudo o que é memorizável e que pode ser automatizado os computadores e as máquinas já o fazem por nós.
Quando vivemos uma fase de instabilidade cultural ? característica dos momentos de mudança ? as pessoas tendem a ter medo da novidade, e, ao invés de encararem o desafio do futuro, apegam-se àquilo que conhecem, aos valores do passado. Só que o passado não volta. E repetir velhas fórmulas num mundo novo não funciona. Eu compreendo que haja uma certa dificuldade em aceitar estes desafios, mas eles são inevitáveis. Mais dia, menos dia essas pessoas vão ter de mudar.

Após dez ou doze anos de aprendizagem, os alunos retém apenas, em média, 30 a 45 por cento daquilo que lhe foi ensinado. Professores e alunos perdem tempo e o Estado dinheiro!

De que forma encaixar essa mudança de paradigma nos modelos tradicionais de formação?

Esse é o grande desafio. Lamentavelmente, qualquer transformação na área educativa é lenta ? porque se trata de uma transformação cultural. E o sucesso das mudanças culturais depende, em última análise, do maior ou menor grau de apropriação por parte dos agentes educativos. E nós estamos ainda a iniciar esse processo, que, na minha opinião, deverá prolongar-se por mais quinze ou vinte anos.
Hoje em dia o professor confronta-se com muitas dificuldades na sala de aula, é muito difícil dialogar com as crianças e jovens, motivá-los, tentar convencê-los de que a aprendizagem é uma garantia de futuro ? sobretudo num contexto de desemprego e de instabilidade. O que leva hoje as crianças à escola não é mais a obrigatoriedade e a necessidade de passar de ano, e cabe aos professores descobrir as suas motivações e apresentar outros estímulos.

Que conselhos práticos daria a um professor no sentido de implementar estratégias de criatividade na sala de aula?

Eu costumo dizer que o professor do futuro tem de valorizar três grandes qualidades: a primeira é falar um pouco menos e ouvir mais os seus alunos. Ouvir as experiências que eles trazem das suas comunidades, de casa, das relações entre eles, e construir o conteúdo curricular a partir dessas experiências pessoais ? evitando aqueles exemplos teóricos que fazem com que eles se afastem do conhecimento.
Quantos alunos conhecemos que têm onze anos de Português e no final saem da escola sem saberem fazer um currículo? No entanto, ele é indispensável para conseguir um emprego? Pede-se-lhes que escrevam sobre inúmeros temas, mas esquece-se frequentemente de lhes pedir que escrevam sobre si próprios. São exemplos como este que me levam a acreditar que a escola entrou num nível de teorização tal que acabou por se desligar da realidade concreta dos alunos.

Qual é a segunda qualidade que considera importante?

É a capacidade de observação. Se damos aulas a crianças e jovens temos de conhecer a realidade em que eles se movimentam, os desenhos animados que vêem, as músicas que ouvem, os gostos que manifestam, etc. Pode-se argumentar que se gosta de dar aulas a crianças mas que se detesta desenhos animados. Perdoem-me os professores, mas a docência é uma profissão mágica, pode-se dar aulas a alunos de outras idades. O mesmo se aplica aos adolescentes: os professores têm medo de falar de sexo, não sabem lidar com o tema das drogas, não conhecem a sua música, rotulam e muitas vezes desrespeitam as diferentes culturas juvenis, mas no final esperam respeito da parte deles. Ora, desta forma não é possível?.
É decepcionante saber que após dez ou doze anos de aprendizagem, os alunos retém apenas, em média ? segundo revelam alguns estudos científicos ?, 30 a 45 por cento daquilo que lhe foi ensinado. Os professores perdem o seu tempo, as crianças e os jovens idem e o Estado gasta dinheiro inutilmente.
Finalmente, a terceira e principal qualidade do professor é, na minha opinião, ousar. Ousar fazer diferente, criar, transformar a realidade que o rodeia, sempre em busca de transformar os educandos nos protagonistas do acto de ensino-aprendizagem quotidiana da sala de aula. Para isso o professor precisa de estar aberto às mudanças na sua forma de trabalhar e de agir. Este é o principal desafio: superar as suas limitações e estar aberto ao acto criativo. Afinal, como já atrás referi, a criatividade é a capacidade que produz a diferença nesta nova era.
Além disso, o professor tem de ter consciência que a educação é feita de erros e de acertos, e que ele não deve ter medo de errar, procurar ter consciência de que ele é o grande autor da sala de aula e não o Piaget, o Vygotsky ou o Marx. Com medo de errar, os professores acabam por reproduzir as velhas formas de aprendizagem. E dessa forma não há sintonia com os alunos.

De que forma introduzir essa atitude quando a profissão docente é cada vez mais orientada para a necessidade de cumprimento dos programas e para a maximização dos resultados?

Tentando perceber que o currículo não é um conceito fechado e que não são os conteúdos escolares que impedem o aluno de ficar motivado. O que impede essa motivação é a forma como o professor ministra o conteúdo. Essa é a grande dificuldade com que se confronta qualquer professor.
Este argumento não significa, porém, que considere menos importante o currículo ou que os conteúdos programáticos não devam ser ensinados tal como foram delineados. A discussão está na forma como romper esse paradigma que nos escraviza, de afastar a ideia de que apenas se aprende Geografia olhando para os mapas, Português lendo livros, Matemática calculando, quando isso não é verdade. O professor tem de ser chamado a operar essa mudança, e eu acredito que quando esta prática se alargar além das actividades extra-curriculares e se estender aos próprios planos curriculares poderemos começar a assistir a uma evolução no plano social.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

Max Haetinger
Professor e director do instituto Criar
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Max Haetinger
Professor e director do instituto Criar
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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