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Entre «manchas negras» e «sombras brancas», a força do desejo

Gosto e sentido de uma formação ao longo da vida 

Eu tenho uma espécie de dever de sonhar, de sonhar sempre, pois sendo mais do que uma espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espectáculo que posso.
(Fernando Pessoa, do Livro do Desassossego)

Já o sabemos, o mundo do século XXI apresenta-se como especialmente complexo, desencantado e incerto, reclamando resposta urgente para problemas como a pobreza, a violência, o preconceito, a discriminação, o segregacionismo e a desigualdade social. Neste cenário, Portugal, dizem-nos, continua preso numa qualquer estação do tempo, incapaz de apanhar o comboio do progresso, como o fizeram outros países, a Coreia ou a Finlândia. Os números não enganam, os números da nossa vergonha, do nosso défice, do nosso atraso. Estamos na cauda da Europa, temos más classificações em todas as escalas internacionais, apresentamos um mapa geográfico e sócio-político cheio de «manchas negras». É preciso, pois, que lancemos rapidamente «mãos à obra», se bem que, por outro lado, parece não haver lugar para grandes ilusões porque, na melhor das hipóteses, só conheceremos efeitos positivos na próxima geração. E é daqui, das águas profundas de um pessimismo cinzento, partindo de um diagnóstico de desolação e flagelo nacional, que tende a surgir o apelo para a formação ao longo da vida, recebido em «pequenas doses de nevoeiro» que, como todo o nevoeiro, não tira as coisas do nosso campo de visão mas rouba-lhes força. Recorrendo assim a palavras de José Gil, pode-se dizer que, produzido em ambientes sombrios e nublados, o discurso em torno da formação ao longo da vida é ele próprio gerador de «sombras brancas». Algo muito próximo do que António Nóvoa chama de «discurso gasoso» referindo-se a um discurso tão inconsciente quanto omnipresente, um discurso que ocupa todo o espaço de percepção, toldando-a. Um discurso cheio de falsas evidências que, como tal, dificultam a lucidez e paralisam a vontade.
Entre essas, a sombra branca que me parece mais danosa em termos de entorpecimento da consciência é justamente aquela que «envolve» a ligação entre a educação e o combate à exclusão social numa lógica de segundas, velhas ou novas, oportunidades. Oportunidades estas aparentemente tão prometedoras quanto direccionadas para pessoas e territórios publicamente assinalados como carentes e problemáticos. Por paradoxal que esta posição possa parecer, penso que assim se obscurece a utopia da sociedade de conhecimento e, simultaneamente, o sentido das dinâmicas de inserção que sustentam, ou devem sustentar, a existência de uma sociedade justa e solidária. Reconheço que o papel da educação é, sem qualquer dúvida, precioso a este nível, de tal modo que tenho vindo a advogar a pertinência de uma aposta pública na Educação Social, a área cientifico-profissional que responde, precisamente, às exigências de inscrição da pedagogia no quadro da acção social. Uma inscrição mais do que justificada atendendo às situações de risco e sofrimento que atingem tantos seres humanos, ameaçando a sua/nossa humanidade. Mas esta incontornável exigência de atenção prioritária não pode fazer esquecer o carácter enredado dos mecanismos excludentes que, na verdade, correspondem a um fenómeno generalizado, durável e silencioso que atravessa a pluralidade dos espaços e tempos de vida, afectando todos os grupos humanos, sem excepção.
Além do mais, em situação pedagógica aquele que se encontra em posição de «ser educado», seja qual for a sua circunstância de vida, não deve ser julgado sobre o que já sabe ou não sabe, sobre o que parece ser ou não capaz, como se tal constituísse um pré-requisito no reconhecimento do seu direito de aprender. A imagem que projectamos no aprendente influencia a percepção que ele tem de si próprio, condicionando a sua motivação e a sua disponibilidade para o esforço de mudança. Nessa medida, mais do que responder a carências, mais do que corrigir ou punir faltas, trata-se de procurar ajudar a despertar o desejo, essa fome de invisível donde emerge a força para enfrentar os problemas e abrir vias de emancipação nos itinerários de vida. O que pretendo dizer é que só faz sentido equacionar as práticas de capacitação permanente dos cidadãos no horizonte de uma aprendizagem contínua, protagonizada por todas as pessoas em todos os contextos da sua existência, como expressão de um direito e de um dever, ambos universais e inalienáveis. O optimismo pedagógico subjacente ao paradigma de formação ao longo da vida só pode ser compreendido à luz de um optimismo antropológico assente na crença incondicional na perfectibilidade intrínseca das pessoas, de todas as pessoas.
Somos todos sujeitos do presente e, nessa condição, autores de futuro. Crianças, jovens e adultos de todas as idades. Adultos com quem, afinal, crianças e jovens interagem diariamente, colhendo referências. Decorre daqui, aliás, uma das razões que justificam o gosto e o sentido da formação permanente, o carácter dinâmico e intergeracional da aprendizagem ao longo da vida. Todos somos sujeitos de ajuda, todos somos sujeitos de novas oportunidades. Todos temos o dever de sonhar, de sonhar sempre. E, nessa medida também, todos somos responsáveis. Mais do que uma cidadania compassiva, está em causa uma cidadania activamente solidária. Do nevoeiro tendem a sair visões salvíficas e de pendor totalitário que, alimentando processos de fatalidade paralisante, e ao contrário do que anunciam, só contribuem para reforçar os longos ciclos do fracasso. É preciso olhar de frente os números do nosso insucesso, indicadores de um caminho necessário e ainda por fazer. Por outro lado, é também certo que não poderemos ser capazes de acolher e processar a alteridade do tempo enquanto nos mantivermos surdos às lições que vêm de experiências exteriores, interpelando a nossa mesmidade triste. Mas se esta interpelação não for acompanhada da ousadia de um questionamento interior, causa e efeito do desejo que humanamente nos move, a força desse apelo perder-se-á nas brumas de um qualquer nevoeiro. No lugar da «auto-estima», esse sentimento auto-complacente denunciado por José GiI, importa colocar a «auto-confiança», a confiança em nós próprios, nos outros e no futuro. Entre o «medo de existir» e a sedução pelo «esplendor do caos», esse cativante universo de múltiplos possíveis em relação ao qual alerta por sua vez Eduardo Lourenço, Portugal terá que procurar, em cada presente histórico, o melhor compromisso possível. Lembrando que dizer Portugal é o mesmo que dizer NÓS, os portugueses, todos e cada um.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto
Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto

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