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Da deriva tecnocrática como deriva autocrática
A maioria socialista no poder tem vindo a demonstrar, para quem tivesse dúvidas, que é em nome da crise, real ou fabricada, que o providencialismo se constrói e, em nome deste, se legitima a crença autoritária de que poderemos dispensar o político para que o tecnocrático se afirme e se consolide.
Se formos sérios reconheceremos que não foi o governo de José Sócrates que inaugurou este modo de pensar a actividade política já que sabemos que a tecnocracia, para aqueles que detêm o poder, tem vindo a constituir um modo assaz sedutor de conceber essa actividade. Por isso, mais do que a deriva autoritária, o que nos continua a preocupar é a deriva tecnocrática enquanto expressão de uma deriva autocrática. A mesma deriva que tem vindo a ser apoiada, ao longo dos anos, por muitos daqueles que, por exemplo, a pretexto do denominado «caso Charrua» se arvoraram de repente nos paladinos da liberdade de expressão e do contraditório.
Sejamos claros, o processo disciplinar de que o professor Fernando Charrua foi alvo constituiu, quando muito, a expressão de um acto de gestão voluntarista, mais do que um acto de censura ou de exclusão de um adversário político. Cremos mesmo que, na posição do visado, teríamos solicitado, e há muito, a suspensão da requisição que beneficiava, na medida em que não quereríamos ser coniventes com um governo e uma política educativa que ofendesse de forma tão inequívoca as nossas opções pessoais.
O que nos preocupa não são, pois, os conflitos efémeros a que o jogo de cadeiras entre o PS e o PSD obriga, mas a aceitação, implícita e explícita, de que as pessoas são unidades descartáveis. O que nos preocupa, também, é a prioridade que, hoje, se atribui ao projecto de formar produtores dóceis, cidadãos submissos e consumidores mais ou menos ávidos, consoante os fluxos da economia e daqueles que os controlam. Um propósito que não pode ser confinado, apenas, ao universo PS ainda que seja necessário reconhecer a perplexidade de ver um partido com a denominação de socialista assumir um papel relevante na construção de uma nova ordem social e política que, definitivamente, assume o credo neo-liberal como o seu credo de referência.
No caso dos professores este é, na nossa opinião, um projecto que é contraditório com as necessidades de formação pessoal, social e cultural das gerações de crianças e jovens que hoje percorrem as nossas escolas. Não é possível que os docentes possam promover a inteligência de quem quer que seja, quando essa mesma inteligência não é reconhecida como uma propriedade fundamental de todos aqueles que se dedicam a um tal ofício. Não é possível que os docentes estimulem os seus alunos a abrirem-se ao mundo e aos outros e a desenvolverem uma consciência o mais plena possível daquilo que os seres humanos partilham e possuem em comum se se promove uma carreira através da qual se defende que é, sobretudo, a intercompetitividade que incrementa a capacidade de resposta dos professores face aos problemas quotidianos com que se defrontam. Como é possível defender, então, a escola como um espaço de construção do humano quando se promulga um Estatuto da Carreira Docente que, mais do que reconhecer o mérito, contribui para confirmar, antes, as estratégias de sobrevivência dos mais aptos nestes jogos?
É isto que nos preocupa porque, neste momento, a equipa da Professora Lurdes Rodrigues não só continuou a adiar a adopção de algumas medidas políticas necessárias, como, ainda por cima, face às medidas adoptadas, criou um conjunto de problemas sérios para todos aqueles que, no futuro, herdarem a pasta da Educação. Problemas estes que vão obrigar a um dispêndio de energia em debates, negociações e confrontos que poderia ser gasto em projectos capazes de contribuir para que as escolas, mesmo não podendo dar conta de toda a esperança que nelas depositamos, fossem, mesmo assim, espaços de investimento nas pessoas que nelas habitam.
O que nos preocupa, finalmente, é vislumbrar o modo como a descrença se apodera dos professores, afectando a sua generosidade profissional e, deste modo, afectando a possibilidade destes se assumirem como os protagonistas de uma acção que, sem essa generosidade, se circunscreve a uma acção sem alma e sem crença. Até que ponto é possível que a Escola e, em particular, a Escola Pública possam sobreviver numa conjuntura onde o empenho é substituído pela obrigação e o desejo se confunde com a necessidade?

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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