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"Afinal, o problema não é da Matemática..."
Esta é uma das expressões atribuída a uma das professoras a quem coube corrigir provas de Matemática do 9º ano nesta época de Julho, quando se confrontou com a calamidade dos resultados. "O problema é que os alunos não entendem aquilo que lêem", acrescenta. (cf. Público, 13/07/07). Segundo a mesma fonte, num universo de 96 mil alunos, 24600 não ultrapassou o nível 1 na escala de 1 a 5, mais do que 25%. Alguns dos especialistas ouvidos pela reportagem mostram-se surpreendidos pelos resultados, agora que se esperava que o plano de acção em curso para salvar a Matemática contribuísse, finalmente, para redimir a população escolar desse estigma persistente entre as jovens gerações lusas...
Um desses especialistas, com lugar reservado na comunicação social, debitou mais uma vez a sua sentença: "deitar para o lixo o documento das competências básicas" e privilegiar "a memorização e treino algébrico básico".
Assim se resolve sumariamente a questão central que explica as dificuldades dos alunos e que tão certeiramente foi apontada pela professora/correctora das provas: "O problema é que os alunos não entendem aquilo que lêem". Para o especialista com lugar reservado na comunicação social para as questões da Matemática escolar, a solução para a dificuldade de entendimento do que lêem consiste, simplesmente, em levar os alunos a memorizar e sujeitá-los a treino algébrico básico. Custa um pouco aceitar tal simplificação e até seria de conceder o benefício da dúvida ao especialista em referência, admitindo que terá modulado o primarismo da afirmação com outras considerações que à jornalista terão escapado. O problema é que essa simplificação é crónica, uma espécie de imagem de marca do especialista em questão.
A receita da "memorização e do treino algébrico básico" faz tábua rasa de algumas das características mais pesadas que assinalam o universo da população escolar das nossas escolas públicas de hoje. Sublinhe-se, a título de exemplo, a vasta heterogeneidade sócio-cultural que as atravessa, por um lado e, por outro, a perda de credibilidade e de sentido que os saberes escolares hoje representam, não apenas quanto à sua eficácia no mundo do trabalho, mas também quanto ao seu contributo para a definição do estatuto pessoal e social dos adolescentes e dos jovens. O princípio do "hás de cantar até aprender", enquanto processo de aprendizagem mecânica, como está implícito na "memorização e treino algébrico básico", funcionou e poderá, eventualmente, ainda funcionar, quando apoiado num contexto escolar fortemente condicionado por controlo familiar atento, ou em crenças voluntariosas da parte dos alunos nos benefícios dos diplomas, ou até em factores idiossincráticos de natureza subjectiva conhecidos na gíria estudantil por "ética dos marrões". Neste contexto, até é possível encontrar estudantes que dizem, como é o caso da F. que integrou uma amostra de estudantes do projecto de investigação JOVALES (Jovens, Alunos e Ensino Secundário): "quando não gosto (da matéria) , tento trabalhar mais do que quando gosto, porque quando gosto, quando percebo, não preciso ou mesmo estudo um bocado menos porque já percebo, então estudo mais para tentar manter as notas como se gostasse".
Trata-se, evidentemente, dum caso exemplar e bem ilustrativo daquilo que poderá chamar-se a lógica do sacrifício pessoal como investimento de si em nome do futuro. O estudo não significa, então, mais nada que um "faz de conta"... É como se dissesse "estudo mais à medida que gosto menos...".
O problema é que, tratando-se de singularidades "exemplares" cada vez mais raras, a escola tenda a funcionar como se elas constituíssem a generalidade das situações, o que significa que a escola continua fiel à sua vocação matricial multissecular: ensinar a todos como se fossem um só. E assim, neste contexto, o único recurso didáctico parece ser (como durante séculos foi) a memorização e o treino algébrico básico.
Será, porém, possível regressar a esse tempo? E, mais do que saber se é possível, é legítimo que a Escola o faça? - Pensar, olhar e assumir os alunos como se não tivessem identidade, como se fossem objectos, como se a cultura de que são portadores - e hoje tão diversificada - fosse uma cultura comum?
Como a experiência quotidiana ensina e a investigação confirma, não é possível ignorar que a cultura adolescente e juvenil é cada vez mais complexa e contraditória em função da própria complexidade social desta nossa sociedade "amorangada" e que múltiplas são as formas de exprimir essa complexidade na escola: desinteressar-se das aulas é talvez a mais comum ("as aulas são uma seca"), mas há também aquele empenhamento desesperado dos que querem acreditar que são capazes e nunca chegam a positiva. Quer uns quer outros só existem para a escola por detrás daquele nível 1 que no final do ano tanta perplexidade provoca (ao Ministério). Não será exactamente porque se obriga a tanta "memorização", que mais não é do que "pedagogia bancária" sem sentido? Que tempo, que autonomia profissional e que estímulo cívico e moral são outorgados aos professores para poderem acercar-se daquelas vidas, dar-lhes um sentido que aos próprios talvez nunca tenha ocorrido antes?
Adivinho um coro de respostas indignadas furando este espesso muro de hiperescolarização que se vive actualmente à custa da multiplicação de exames, rankings delirantes, avaliações compulsivas. Então, nada mais tranquilizador para todos do que decretar que os alunos cada vez "se desinteressam mais da escola", "que os miúdos talvez estejam a perder os hábitos de trabalho", como dizia a professora da reportagem, num eufemismo quase piedoso como se tivesse necessidade de acreditar que, antigamente, os alunos já nasciam com hábitos de trabalho...

  
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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