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Marxismo e educação - depoimento de Manuel Carlos Silva

Manuel Carlos Silva
Departamento de Sociologia
Instituto de Ciências Sociais
Universidade do Minho

O marxismo desempenha hoje um papel central não só no pensamento contemporâneo como na orientação da praxis social, desde que não seja replicado como mera fraseologia, que perde de vista o que de melhor tem o marxismo: o seu método histórico e dialéctico na análise da realidade em termos macro, meso e microsociais. Marx e sobretudo Engels recriminavam alguns jovens de encherem a boca de materialismo histórico e dialéctico para não estudarem história e dispensarem-se de pensar as questões do seu tempo.
Os resquícios dessa deriva ainda persistem na ausência de criatividade teórica, cujos defensores ora se limitam a replicar etiquetas 'marxistas-leninistas' e a tomar o legado marxista como um código quase canónico de princípios ou mesmo quando enunciem princípios válidos, são incapazes de ler a realidade e menos ainda dar respostas concretas a problemas concretos: uns velhos, outros novos, caindo por vezes em diletantes verborreias.
O dogmatismo na teoria e o sectarismo na prática constituem hoje os maiores obstáculos ao avanço da teoria marxista e sua necessária renovação, em termos programáticos e orgânicos, para fazer face aos velhos e novos problemas provocados pelo desenvolvimento desigual da sociedade capitalista, assim como às distorções e perversões das experiências ditas do socialismo real.
Não obstante as diversas crises e refluxos no século XX, o marxismo mantém-se vivo e actuante. Contrariamente aos arautos da morte do marxismo, ele continua sendo, em várias ciências sociais, (i) uma fonte de inspiração da leitura da realidade sobretudo em termos macro-meso - desde que não se feche e inclusive se abra a aspectos ou elementos doutros paradigmas e (ii) consequentemente, como alavanca da acção e como motor duma 'utopia' que funciona como mobilização para a transformação. É este o principal papel do marxismo aqui e agora: estudar a realidade com frescura como diria Engels e tomar o materialismo histórico e dialéctico como um método e um guia para a acção.
O Marxismo tem um peso considerável no meu trabalho académico, mas de modo nenhum numa perspectiva absoluta, fechada e acrítica, pois foram prejudiciais ao socialismo os enviesamentos das tradicionais interpretações marxistas, por exemplo, a fixação da explicação monocausal dos fenómenos com base no rígido esquema de infra-estrutura e superstrutura, o qual deverá ser reequacionado e, talvez mesmo, abandonado quando inoperante e, eventualmente, inoperacionalizável.
A deriva mecanicista e economicista de uma plêiade de seguidores cegos e dogmáticos que se reivindicavam do legado marxista teve dois pilares algo afastados mas coincidentes no mesmo ponto: (i) por um lado, o revisionismo reformista social-democrata provindo da II Internacional inspirado em Kautsky e Bernstein, para quem as formas políticas e ideológicas emergem do desenvolvimento das forças produtivas ou a componente infraestrutural da sociedade e, por outro, (ii) o mecanicismo e dogmatismo estalinista que, fazendo assim uma leitura linear e simplista da relação entre infra-estrutura e superstrutura, teve um papel decisivo na fossilização do marxismo durante décadas, da qual, salvo honrosas excepções como a Rosa Luxemburgo, Lukács (cf. conceito de totalidade) ou Gramsci (bloco hegemónico, a importância da religião nos processos de legitimação e dominação políticos).
Alguns neomarxistas com forte influência weberiana como Bader e Benschop têm mesmo abandonado o velho esquema infra-estrutura para adoptar uma postura epistemológica e teórica mais pluridimensional e pluricausal, tendo ido paradoxalmente beber alguma inspiração ao neosistémico estrutural-funcionalista Luhmman. Ou seja, é feita uma fecunda distinção entre o nível sócio-estrutural ou societal; o nível organizacional e o nível interactivo, embora sem deixar de salientar que entre estes três níveis há uma certa hierarquia, em que o sócio-estrutural está na base, condiciona e integra o nível organizacional e, por sua vez, este condiciona e integra o interactivo.
Esta saída teórica, além de conferir aos respectivos níveis uma relativa autonomia, permite, num cruzamento com uma metodologia pluricausal, a superação de impasses teóricos provocados pela defesa de alegadas explicações monocausais. Concluindo, o marxismo tem peso dominante mas considero-o mais fecundo quando não se fecha sobre si mas se abre a outros contributos, tais como o de Weber, o interaccionismo simbólico e outros como Elias, Giddens e sobretudo Bourdieu para a superação de velhos dilemas sociológicos (estrutura-acção, sociedade-indivíduos).
Embora não seja especialista na área da educação, tenho vertido num ou noutro texto a problematização em torno de dois binómios de relevo para a educação: (ii) o lugar e o papel da educação nos processos de reprodução e mobilidade social, o que se prende com as (de)iguais oportunidades de vida: em que medida a escola reproduz as desigualdades pré-existentes ou permite a alteração dessas situações, designadamente na esfera educativa, abrindo as avenidas da mobilidade social ascendente? E, se possibilita, qual o seu significado e alcance?
Enquanto estruturofuncionalistas (Parsons, Davis e Moore), apesar de assumirem a desigualdade como fenómeno inerente a qualquer sociedade, sustentam nas democráticas sociedades modernas a mobilidade social como regra acessível e decorrente do princípio meritocrático (talento, treino), os marxistas e outros críticos como Bourdieu e Passeron sustentam, ora de modo (quase) absoluto, ora de modo tendencial, que as desigualdades sociais designadamente as condições de classe reproduzem-se intra e intergeracionalmente também na e através da escola. Numa terceira posição neo-marxistas críticos e/ou neoweberianos como, aceitando grosso modo a tese da reprodução social, admitem contudo, sobretudo em sociedades modernas ou em transição para a modernidade, um maior ou menor grau de mobilidade social ora em sentido descendente ora sobretudo em sentido ascendente pela via escolar, o que no caso português foi analisado por Elísio Estanque e José Manuel Mendes.
(ii) a relação entre educação e desenvolvimento: se para o desenvolvimento é necessário assumir a educação como um desígnio e prioridade nacional, o desenvolvimento nomeadamente económico é fulcral para elevar os níveis de acesso e de sucesso dos cidadãos ao sistema educativo. Sendo evidente a correlação, assumo que o desenvolvimento económico, não sendo único nem exclusivo factor, é decisivo nos níveis de performance dos sistemas educativos. Porém, as políticas educativas por parte do Estado podem fazer a diferença: pela inércia e a entrega às leis do mercado permitir a continuação do insucesso e abandono escolares ou possibilitar avanços no sentido de criar oportunidades a filhos de famílias com menos recursos e proporcionar condições e plataformas de desenvolvimento humano.

(Depoimento escrito)


  
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Edição:

N.º 169
Ano 16, Julho 2007

Autoria:

Manuel Carlos Silva
Departamento de Sociologia. Instituto de Ciências Sociais. Universidade do Minho
Manuel Carlos Silva
Departamento de Sociologia. Instituto de Ciências Sociais. Universidade do Minho

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