Página  >  Edições  >  N.º 169  >  Imitação à vida* Ensaio de etnopsicologia da Infância

Imitação à vida* Ensaio de etnopsicologia da Infância

Para os meus netos Tomas e Maira Rose

Bem sei do filme que existe com este título. Como todo leitor deve supor, não é do filme que queria falar, muito embora a temática seja semelhante. Os adultos do filme imitam outros para aprender a viver e se comportar como for conveniente; e as crianças gostam de trocar papéis: a criança preta quer ser branca e tem vergonha da mãe que é preta, enquanto a criança branca adora brincar a ser preta para se agarrar às saias da sua ama africana. A criança africana diz ser filha da patroa branca, essa que imita actrizes para conseguir um papel no teatro. E a imitação começa. A vida é aprendida de observar os comportamentos adequados, como escrevi um dia num texto meu que Luís Souta corrigiu, com amizade e fraternidade. Mais uma imitação à vida: as suas correcções fizeram-me criar uma outra categoria: a conduta conveniente. A conduta adequada é pública : saber falar, dizer as palavras atraentes, usar os vocábulos aceites em sociedade, cumprimentar de mão estendida, tirar o chapéu, e outras. Tal como me ensina Ana Paula Vieira da Silva ao corrigir o português dos meus textos. A conduta adequada é a que corresponde ao grupo de pares com os que partilhamos a vida.
A criança distingue muito bem entre os dois tipos de comportamentos: se está com adultos, pede licença para sair da mesa antes dos adultos; se está com os seus pares, quem acabar primeiro é quem corre ao televisor para continuar a ver o filme que tinha começado antes do almoço. Com cortesia, solicitam se podem: bem sabe a criança que os adultos não vão dizer não pois a seguir seria uma birra de todo tamanho que não deixava comer calmos os adultos e estaria irrequieta porque os seus nunca mais acabavam a conversa, a calma de uma comida, as histórias que a mesa eram contadas e que aos mais novos nada interessava, não entendiam e o filme era mais interessante que as histórias antigas. Excepto, é evidente, se estiverem a falar dos pequenos, deles próprios: eles mandavam calar os "grandes" e completavam o conto à sua maneira. Os adultos calavam e permitiam, em silêncio, ouvir os cumprimentos que os pequenos ofereciam a si próprios? fosse verdade ou mentira. Na boca de uma criança, aliás, nunca há mentiras, é a sua forma de ver os factos e a sua interpretação dos mesmos; interpretação que o adulto deve entender e não acrescentar e não interpretar a realidade exposta pelos mais novos. Seria uma grave interpretação do que é educar e dar carinho. O adulto imita a vida enquanto é pai ? mãe, aceita o ideário dos pequenos e nunca diz que não é verdade o que eles contam, e vai mudando com o tempo das crianças a crescerem. A doçura dos progenitores é mais uma aceitação das crianças e uma prova de amor e de estima, de emotividade e de orientar a sua vida pelas carícias das palavras e da segurança a dar aos petizes, confiança em si próprios, sem jamais puni-los. Se houver uma birra, faz-se ao mais novo um olhar para outro lado, ou com uma carícia, ou a ignorar a birra até esta passar. A criança imita a vida que os seus adultos ensinam com o seu próprio comportamento. Como esse dia do voo de volta ao seu país de origem, imensas horas retidos no aeroporto ao mudar de avião e ter perdido a combinação. Os adultos, impacientes, debatiam um com o outro, perdido o imaginário de brincar aos aviões, de cantar aos bonecos, de se contarem histórias e de lembrar a praia, sumidos nas preocupações de horário e outros assuntos. Tomas e Maira disseram aos seus pais: as pessoas não se zangam, dão a mão e passeiam, é o que vós nos têm ensinado. E os pais acalmaram e, como bons seres humanos que são, riam e brincavam com eles. As horas de espera voaram num instante, enquanto Tomás imitava a musculatura e força do pai e Maira Rose alimentava a mãe com comida imaginária. Os adultos riam, como eu próprio, ao saber da história ao telefone, que me levou a escrever estas palavras como mais um texto de etnopsicologia das crianças.
A vida é uma imitação se houver boa vontade do adulto para a criança. Esta aprende a ser feliz ao ser tratada com uma certa distância e nunca criticada pelas "macaquices" do seu comportamento. Imitação à vida é a reprodução do amor que os adultos têm entre eles e, por extensão, aos mais novos. Como acontece comigo, os meus filhos e os meus netos.

*Retirado dos meus livros de notas de trabalho de campo.
Parede, 5 de Junho de 07


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 169
Ano 16, Julho 2007

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo