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O caso (arquivado) dos sem-abrigo londrinos
Desfazendo, em Serralves, os narizes de cera e as pirâmides invertidas que condicionaram alguns pobres contentamentos passados, julgava-me quase desformatado da escrita jornalística quando ensaiei um soneto dos antigos na quadra que se segue e que, felizmente, não teve seguimento - Já não sou jornalista dos jornais // Agora vivo longe das notícias // que outrora alimentavam as delícias // de tantas novidades virtuais.
Mentindo, pensava-me capaz de romper com a velha profissão de repórter temperado na escola da notícia (e também com todas as ligas de duquesas de todos os sonetos, entenda-se), como se tivesse esquecido os casos que, em 28 anos de prisão maior, deixei por resolver e remeti para o arquivo de uns quantos cadernos de apontamentos ainda virgens à espera de melhor oportunidade e, principalmente, de mais espaço.
Um desses casos por resolver foi o de uma visita a Londres, no tempo da primeira guerra do Golfo (era presidente dos Estados Unidos da América o pai do actual presidente Bush), visita efectuada a convite de uma multinacional de seguros que organizou na capital do Reino Unido uma conferência internacional sobre o futuro das seguradoras no, então ainda distante, ano 2000. Uma mordomia e uma festa sobre a qual quase nada escrevi.
Desse caso, lembro o hotel onde fiquei, em pleno Hyde Park, uma sessão do musical CATS, um companheiro de viagem e da aventura da escrita jornalística, o Araújo Moreira que sobrevive na saudade, e o passeio higiénico que ambos cumprimos no final do jantar oferecido pela seguradora aos jornalistas portugueses, passeio que se ficou pelas imediações do hotel e que, mesmo assim, deu para descobrir uns tais sem-abrigo, realidade que em Portugal ainda era quase desconhecida.
Esta não é a primeira vez que tento justificar o injustificável arquivamento deste caso. Noutras memórias, que escrevi sob o disfarce de Crónicas de Domingo, referi-me não apenas a este caso por solucionar, mas também ao caso arquivado da inauguração do novo Aeroporto de Munique, um verdadeiro casamento de aldeia que durou uma semana, a comer e a beber, sobre o qual também pouco ou nada escrevi.
Costumo dizer que eu, e muitos jornalistas como eu, ainda temos dificuldade em escrever sobre a alegria. Parece que a tristeza e a desgraça são mais fáceis de paginar em pirâmide invertida, mas até esta explicação esfarrapada esbarra no facto de nada ter escrito sobre aqueles sem-abrigo que vi, pela primeira vez, em Londres, quando passeava, calmamente, nas imediações do Hotel Hyde Park, dissertando sobre os malefícios do thatcherism.
Também pelos nós que faltam desenlaçar, não é fácil romper com esta formatação. Apesar de começar a tornar-se incómoda, mesmo quando remetida para o domínio das memórias ditas de uma morte, vaidosamente sempre inacabada.

  
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Edição:

N.º 169
Ano 16, Julho 2007

Autoria:

Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias
Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias

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