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Globalização em layers: cosméticas e cosmopolitismos
Até pelo tempo estival, a minha presença, naquele dia e naquela cidade, era improvável. Um sol quente aquecia os corpos dos berlinenses que se reuniam em diversos pontos da cidade para se manifestarem neste último 1 de Maio, em vésperas de mais uma cimeira do G8. Quando abandonei a estação de U-Bahn em Kottbusser Tor e à medida que me fui aproximando do local da concentração o aparato policial ia ganhando evidência, mas também a densidade de gente nas ruas.
Oranien Platz. Este ano, com vista a diminuir o risco de confrontos, as autoridades municipais haviam organizado os festejos com diversos palcos instalados numa esquadria alargada de ruas e parques. A polícia e as brigadas anti-terrorismo vigiavam à distância razoável aquela concentração heterogénea e espontânea de milhares de pessoas (30.000 segundo li nos jornais na viagem de regresso, a maior de sempre!). Sobretudo jovens. Berlim é uma das cidades mais jovens da Europa, e seguramente a mais cosmopolita. A diversidade étnica e cultural é ali um puzzle de múltiplas peças e a concentração era disso reflexo. Entretanto, outras manifestações decorriam pela cidade: as dos sindicatos, uma manifestação alternativa, e, de acordo com os meus amigos ? um ex-aluno português mas emigrante no Brasil e uma alemã ex-Erasmus no ISCTE ? a manifestação mais interessante iria começar em breve: o Mayday Parade anti-globalização, uma manifestação de cerca de 6000 pessoas, que seguiam bem vigiadas por um significativo aparato policial, ao som de carros que debitavam trepidantes sons tecno-house intervalados com discursos politizados (em alemão e em espanhol) sobre os efeitos da globalização selvagem e sobre a luta contra o capitalismo neo-liberal. A velha manif lisboeta veio-me então à memória com os seus cartazes, slogans e palavras de ordem sempre disputadas por uma diversidade de agrupamentos políticos, sindicais e associativos que se agrupam num desfile com muita assistência mas bastante rotina comemorativa.
Em Berlim, soube depois, desde 1997 é costume esta manifestação gerar graves conflitos ? fala-se mesmo num ritual de violência com lojas partidas e cargas policiais. Esta aliás era a razão principal para o executivo municipal "docilizar" os manifestantes, concentrando-os numa zona da cidade, devidamente vigiada. A «parade» era assim uma pequena ruptura aos planos preventivos, embora tivesse sido autorizada. Se o cenário fosse apenas este, eu diria que a polarização e as leituras simplificadas da globalização estava ali concluída ? de um lado o Estado e as forças transnacionais do G8 e do outro a turba discordante reclamando mais direitos de cidadania e protecção laboral. Todavia, tudo não passava das primeiras camadas, os layers seguintes esperavam apenas a entrada em cena.
O Mayday «parade» realizou-se num percurso muito simbólico: o chamado bairro turco berlinense ou a «Little Istambul». Tudo seria previsível caso não estivesse eu numa manifestação onde os piercings e as cabeças coloridas, as garrafas de cerveja e os corpos jovens não se misturassem de facto com os rostos de tez escura, nem com as matizes étnicas de orientalismos urbanos no coração da Europa. Para meu espanto ? e, confesso, algum desalento ? os migrantes destas paragens olhavam(-nos) das suas janelas, dos seus passeios, dos seus estabelecimentos. Os letreiros multiplicavam origens turcas, libanesas, marroquinas, mas também asiáticas. Mas a marca nas janelas, onde velhos em «Jhilaba» e jovens num «melting pot» de referencias matizadas nas suas roupas, observavam algo desatentos, desinteressados, e até mesmo perplexos a marcha alternativa onde a palavra de ordem era "Alles fur all!" (Tudo para Todos!). A terceira camada da globalização tecia-se agora neste estranha troca de olhares, enquadrada pela multiplicação quase anedótica de antenas parabólicas que ali estavam para assegurar que os canais turcos chegavam às casas destes migrantes temporários. Então, desta forma, a globalização do trabalho e a circulação de pessoas não se limita a fazer mover mão-de-obra; múltiplos processos de redefinição identitária se constroem na diáspora com sedimentação de ideias e imagens dos territórios nacionais de partida.
O último «layer» da globalização tomou forma de modo inesperado. E no entanto, esteve sempre ali presente. Tal como o Estado-Policial se deslocava nas margens da manifestação, também um grupo assinalável de sem abrigo se dispunham a acompanhar a manifestação dos "renegados" da democracia burguesa. Numa verdadeira réplica dos abutres, bandos de sem abrigos procuravam os despojos da manifestação. Garrafas de vidro e plástico abandonadas pela rua, sobretudo Berliner Weiss, eram agora acumuladas num tesouro efémero dos seus depósitos. A Europa do desemprego, dos níveis pouco mediatizados de pobreza absoluta, do alcoolismo e da droga, do abandono e da desestruturação familiar e parental, do «lumpen», estava agora ali, e como sempre, nas margens, nas fronteiras da civilização. O paradoxo inquietante é que a manifestação prosseguia aparentemente também impenetrável e desatenta a estes desapossados, exemplos da impiedosa máquina da globalização que as vozes e os cartazes tão gritantemente condenavam.
No final da manifestação carga policial, alguns "guerrilheiros" urbanos presos depois de provocações, mas o Estado venceu como de costume; certamente os migrantes turcos viram esses desenlaces nos seus canais e as noites seguintes foram palco de narrativas e reencontros entre os grupos de militantes alternativos que assim reactivaram a história dos grandes confrontos de 1997 ao som tecno-house.
Eu, turista acidental em Berlim, parti no dia seguinte numa companhia área de custo reduzido. Convidado pelo Instituto Camões para umas palestras nos leitorados de Hamburgo e Leipzig a propósito de uma exposição itinerante - Portugal: Património da Humanidade - procurei desconstruir criticamente os modelos neo-coloniais da patrimonialização. Berlim foi apenas um ponto de escala, tal como a provocação com que finalizei as palestras: e porque não apoiar a candidatura da Praça Martim Moniz dos cruéis painéis de azulejos do Metro, da memória da luta contra os mouros na conquista da cidade, mas também dos migrantes contemporâneos, das prostitutas em fim de carreira e dos sem abrigo, a Património da Humanidade? Talvez este venha a ser o património da Globalização, cosmopolita, revelando desigualdades e diferenças sem cosméticas.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 168
Ano 16, Junho 2007

Autoria:

Paulo Raposo
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, ISCTE, Lisboa
Paulo Raposo
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, ISCTE, Lisboa

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