O poder dos ricos e a admiração dos pobres
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O poder dos ricos merece crítica
Dados divulgados recentemente mostram que as desigualdades entre os detentores de propriedade e os seus gestores, e o resto da população, têm vindo a acentuar-se cada vez mais. A sociedade tem-se polarizado progressivamente. Num pólo concentra-se a riqueza e no outro a pobreza. Esta desigualdade é reforçada pela perda de direitos sociais e de cidadania da maioria da população. Não é só o dinheiro que se concentra nas mãos de uns poucos, é também o direito a uma vida digna que vai pertencendo, cada vez mais, apenas a alguns. Este não é um fenómeno nacional mas é uma característica do capitalismo internacional nesta sua fase tardia. Quando se faz a crítica desta situação, é comum surgir a tese que é aceitável criticar os rendimentos dos gestores do sector público, mas não é aceitável criticar os do sector privado e, menos ainda, criticar a acumulação desmedida de capital das empresas privadas. O argumento procura sustentar-se na ideia que as remunerações e o rendimento no sector privado não são suportados pelo erário público, antes resultam de decisões privadas voluntárias. Esta tese, que funda a artificial separação entre o domínio dos assuntos do Estado (sujeitos a avaliação política e moral), e um domínio privado (apolítico e amoral), não é aceitável. Esta dicotomia, entre a responsabilidade moral e política do domínio do Estado e a irresponsabilidade do domínio do privado, merece ser contestada e superada. A discussão das responsabilidades sociais, do público e do privado, deve ser colocada no terreno certo. Esse terreno é o do tipo de valores que devem definir as relações económicas entre os indivíduos e os resultados que eles obtêm, no público e no privado. O que se passa na economia, ? em toda ela independentemente da propriedade ?, afecta o que cada pessoa é capaz de ser e de fazer em todas as outras esferas da vida social. O sector privado não é um reino aparte do resto da sociedade. Não é um campo onde a responsabilidade seja reservada ou limitada. Tudo o que se passa no sector privado é suportado, e tem por trás, decisões políticas. Tais decisões ? dos governos do Estado ? são enquadradas por valores que estabelecem as regras do jogo que influencia quem se apropria do quê e porquê. A acumulação de capital é o que é, e os gestores privados ganham o que ganham, em resultado do modo como o Estado enquadra as empresas e como estrutura os direitos e as obrigações que regem o que se passa no seu interior. O mercado e a propriedade privada não são instituições de geração espontânea a viver à margem das comunidades e do Estado. É a forma como são enquadradas pelo poder político que determina o que obtêm e como distribuem os rendimentos. E o seu comportamento influencia o funcionamento da sociedade. A concentração de dinheiro converte-se sempre em concentração de poder e de influência. Esta concentração determina o que se passa quer na economia quer fora dela. As decisões privadas têm assim um profundo impacto público. E este impacto público justifica que tais decisões sejam sujeitas ao escrutínio político no espaço público. As decisões privadas reforçam o sistema social. Se são acertadas reforçam a justiça, se são erradas reforçam os erros e as injustiças do sistema. Um sistema desigual e injusto (como este que em Portugal se reforça perante os nossos olhos), corrói a cooperação, bloqueia o desenvolvimento das pessoas, mata solidariedades, faz perder o gosto pelo trabalho bem feito, baixa aspirações, leva ao marasmo e à apatia, sangra e enfraquece a comunidade... Por estas razões, e por outras que não se referem, a crítica é tão necessária e justa quando incide no sector público como quando acerta no sector privado. A escandalosa acumulação de capital e as enormes desigualdades remuneratórias, no público como no privado, só podem provocar uma profunda indignação moral e política. E a esta indignação ninguém escapa pelo facto da injustiça ser perpetrada ao abrigo do estatuto privado.
A admiração dos pobres deve ser resolvida
O economista e filosofo escocês Adam Smith (1723-1790) deixou escrito que «a disposição para admirar e quase para adorar os ricos e poderosos e para desprezar, ou pelo menos para negligenciar, as pessoas pobres ou de condição humilde é uma grande e universal causa de corrupção dos nossos sentimentos morais». Este é um facto da realidade que tem atravessado os tempos e as mais diversas realidades sociais. Em grande parte a explicação não só para uma certa apatia crítica, mas até para o apoio a políticas socialmente injustas e eticamente condenáveis, reside nesta apetência dos pobres para emular os ricos e poderosos. Pelo menos aparentemente, a «direita» e a «esquerda» com vocação de poder, aprenderam a tirar partido desta fragilidade de boa parte da população. Os políticos de governo precisam de pessoas intelectualmente falidas de modo a disporem de muitas cabeças que sirvam de antenas de captação e retransmissão da sua retórica. Já uma certa esquerda, marginal ao poder, acredita serem a miséria, a injustiça e os maus tratos, promotores da consciência crítica e até da revolta social. Mas neste terreno, estamos com Oliveira Martins quando perguntava se «é licito esperar que o acicate da miséria consiga o que não conseguiu a voz da razão?» e de seguida respondia: «A fome é má conselheira. Quem dela esperar mais que exaltações mórbidas, talvez se engane». É pois no esclarecimento e na informação, no debate e na razão que havemos de buscar o desenvolvimento da capacidade dos pobres se subtraírem ao fatídico domínio dos ricos e fascínio pelos poderosos. Neste processo de racionalização, importa que se comece por reconhecer a penosa dificuldade que hoje temos em diferenciar a «direita» da «esquerda». Estas duas forças, ambiciosas de poder, partilham, nesta fase do capitalismo, o essencial no que respeita à organização do Estado e à desigualdade de direitos e deveres de ricos e pobres. Dos pobres reclamam que sejam mais competitivos, que se qualifiquem, se modernizem e sejam mais exigentes. Até tudo poderia ir razoavelmente se por mais exigente se entendesse reclamar o direito de todo o povo e de todos os povos a viverem melhor e de forma mais justa. Mas para este novo poder, de «direita» ou de «esquerda», ser exigente significa estar disposto a trabalhar mais do que qualquer escravo, ganhando o mínimo possível e contribuindo com agrado para enriquecer ainda mais os que já são muito ricos. Pedem-nos disponibilidade para trabalhar como os antigos escravos negros, os galegos de outros tempos, os mouros de trabalho de outrora ou os prisioneiros chineses de agora. Este é, actualmente, o novo paradigma do português moderno, popular ou socialista. Um paradigma que se sustenta e cresce neste caldo de cultura onde os pobres e os mais fracos continuam a sentir-se fascinados e reverentes perante os mais ricos e poderosos. E a esquerda fora do poder? Essa também já não pensa, nem se pensa, fora do paradigma capitalista. Mas é tarde, neste texto, para levar por diante essa conversa.
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Ficha do Artigo
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Edição:
Ano 16, Junho 2007
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Autoria:
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
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