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O Estatuto da Carreira Docente: Rabo escondido com o gato de fora!

Em texto recentemente publicado n'a Página, intitulado "A exclusão dos directores de turma", A. J. Afonso alerta para o que considera um dos "paradoxos maiores" do novo Estatuto da Carreira Docente (ECD), materializado na exclusão das funções de coordenação de turma do âmbito das atribuições e competências reservadas à "categoria superior de professor titular"(1). Contudo, como observa o mesmo autor, o "paradoxo maior" pode ser apenas aparente. Basta que mudemos de lentes e não nos deixemos ofuscar pela construção retórica da qualidade, procurando antes ver um pouco para além das aparências pois, se a referida exclusão é incongruente com os princípios orientadores explicitados no preâmbulo do ECD, e corre ao arrepio do que tem sido defendido em alguns textos da especialidade, já se torna mais inteligível quando inserida no "espírito do tempo" a que se refere A. J. Afonso, ou seja, conter/diminuir a despesa pública com a educação.
Nesta breve cogitação pretendo interrogar o sentido de outro (aparente) "paradoxo maior", também ele traduzido na exclusão de uma função específica das atribuições e competências reservadas à "categoria superior de professor titular". Refiro-me ao caso do director executivo/presidente do conselho executivo, órgão a quem compete a "administração e gestão da escola nas áreas pedagógica, cultural, administrativa e financeira".(2) Quais os argumentos que sustentam a necessidade de possuir a categoria de professor titular para dirigir centros de formação de associações de escolas, enquanto o órgão a quem está incumbida a administração e gestão pedagógica da escola está dispensado dessa qualificação? Como compreender que uma função tão estratégica para a promoção do "trabalho organizado dos docentes"(3) dispense o estatuto de professor titular, enquanto, por exemplo, a coordenação de ano, de ciclo ou curso o exige?
A dilucidação deste "paradoxo maior" implica olhar para além da retórica legitimadora em que se ancora o discurso oficial que fundamenta as opções políticas que, também aqui, se pretendem disfarçar de imperativos técnico-pedagógicos. Sabendo que uma parte significativa dos professores que actualmente exercem funções de presidentes de conselhos executivos/directores não cumprem os requisitos mínimos para acederem à "categoria superior de professor titular"(4), e tendo antecipado que, para o sucesso na implementação do novo ECD, o apoio, ou pelo menos a não oposição, dos órgãos de gestão das escolas constituía um requisito fundamental, a administração educativa parece ensaiar aqui um clássico processo de cooptação formal(5) (Selznick, 1971) através do qual procura, por um lado, resolver um possível problema de recrutamento futuro de dirigentes escolares (dada a contingentação imposta para a categoria de professor titular) e, por outro lado, neutralizar uma previsível oposição, velada ou manifesta, deste actor estratégico para o sucesso na implementação do referido Estatuto.
As racionalidades subjacentes a esta "benesse" não se esgotam na estratégia de cooptação antes sugerida. A não exigência da "categoria superior de professor titular" como requisito para candidatura ao cargo de presidente do conselho executivo/director pode, afinal, constituir uma porta aberta (leia-se escancarada) à possibilidade de exercício do cargo por não docentes. Efectivamente, caso tivesse sido consagrado o referido requisito, poderia limitar-se drasticamente o leque dos elegíveis, mas assegurava-se, pelo menos, a exclusividade de acesso ao cargo aos professores. Ora, tendo em conta o "espírito do tempo", esta não teria sido uma salvaguarda menor.
Num cenário em que o director executivo/presidente do conselho executivo não tem de ser professor titular, e considerando que este é um dos intervenientes, na qualidade de avaliador, no processo de avaliação do desempenho docente (aí incluídos os professores titulares), seremos necessariamente confrontados com situações em que o avaliador é menos qualificado que o avaliado, o que, além de questões de legitimidade, levanta sérias interrogações de legalidade.
A retórica legitimadora em que se sustenta o novo ECD é de facto uma manta curta: quando puxamos uma ponta para tapar um buraco, logo meia dúzia se escancaram. Será caso para dizer que este ECD, enquanto "instrumento de aforro", não chega a constituir gato escondido com rabo de fora. As incongruências e paradoxos são tais que talvez seja mais apropriado falar de rabo escondido com gato de fora!


1) Cf. a Página, ano 16, nº 165, Março de 2007, p. 8. 
2) Cf. Dec. Lei nº 115-A/98, de 4 de Maio, nº 1 do artº 15º. 
3) No preâmbulo do EDC considera-se que "o trabalho organizado dos docentes nos estabelecimentos de ensino constitui certamente o principal recurso de que dispõe a sociedade portuguesa para promover o sucesso dos alunos, prevenir o abandono escolar precoce e melhorar a qualidade das aprendizagens." 
4) Desde logo, porque muitos não possuem, pelos menos, 18 anos de serviço docente efectivo.
5) Cf. SELZNICK, P. (1971). Cooptação: Um mecanismo para a estabilidade organizacional. In E. Campos (Org.). Sociologia da Burocracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 167
Ano 16, Maio 2007

Autoria:

Virgínio Isidro Martins de Sá
Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho
Virgínio Isidro Martins de Sá
Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho

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