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O Rafael não está abandonado
O caso do Rafael era difícil, disseram-nos. De uma escola tinha mudado para outra e, entretanto deixara de ir a nenhuma. As pistas que, nestes casos, deviam estar claramente registadas e fáceis de seguir, nem sempre são claras; tecem-se e emaranham-se noutras informações e perde-se entretanto um contacto, o nome de uma rua, o número de uma porta, um telefone e quando se encontra e alguém atende é como em "Alice já não mora aqui!"...Mudou de bairro, de cidade? Dá por outro nome? Quem sabe? Até que, quando finalmente se encontra, sabe-se que o Rafael ficou, apenas; o pai estava preso quando a mãe foi presa também, o Rafael ficou. Ficou como a mobília da casa, ou o gato, a casa vazia e depois a ama que tomou conta dele. O Rafael ficou e continuou a ir à escola ou a não ir, faltando intermitentemente, ou continuou a faltar indo de vez em quando. O Rafael ficou com a ama, que tem outros meninos e alguns que também ficaram quando as mães rumaram a outras paragens. E um dia a ama também saiu e foi para outro bairro, que isto de viver no bairro, quando se muda, muda-se para outro que alguém escolhe e decide. E o Rafael também foi, mas ficou, ficou na sua relação atribulada com a escola, que não era a mesma, mas era como se fosse e ir e faltar continuava a ser o preenchimento irregular dos seus dias. A escola intervém, uma vizinha e a ama, tentam ajudar, uma Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) mexe-se e, para actuar, tem que falar com os pais pois falar com a ama não chega para se poder agir. Procuram-se os pais, finalmente descobrem-se os estabelecimentos prisionais em que estão. Agora há que falar com eles.
Os serviços prisionais são disponíveis, estabelecem o contacto, e a mãe vem ao telefone. Do lado de lá uma voz intimidada, com um toque de ansiedade e um soluço retido.
Sim, sou eu a mãe do Rafael. Obrigada minha senhora por ter telefonado que eu estou para aqui nesta aflição, nem sei o que fazer, o pai também está preso, o irmão mais velho já saiu faz tempo de casa e nem sei para onde ele anda e a irmã está com o homem dela para a América e nem tenho tido notícias e o meu Rafael que era o mais novo e um amor de menino que a senhora agora nem acredita, para aí ficou?Eu fiz aquela asneira, que até era para ver se a vida dava uma volta e outro rumo, e depois aconteceu esta desgraça e eu não pude fazer nada só pedir à Ermelinda, a ama dele, que me deitasse uns olhos à casa e ao rapaz que era para ver se ele ficava e não perdia a escola?que eu nem queria que ele soubesse muito bem o que se estava a passar que eu até parece que se me estoira o coração de saudades de há mais de um ano não ver o meu menino mas a Ermelinda disse que sim, que tomava conta dele e eu para aqui estou sem poder fazer nada mas antes quero que ele não me veja e vá fazendo a vida dele longe disto que não é nada bom para ele, para ele continuar a ir à escola, que assim sempre o amparam um bocado, e poder lidar com outros miúdos da idade dele e para ver se dá um jeito à vida? E agora a senhora diz-me do que ele tem andado a fazer, e de como está a faltar à escola e tudo isso. E ai que vergonha, que vergonha a minha, minha senhora, o pai preso, eu aqui, e ele a portar-se tão mal, diz a senhora?O quê é que as pessoas vão pensar? Até parece que é uma criança abandonada, sem pai nem mãe, que ficou largado no mundo, sem eira nem beira? que vergonha, que vergonha a minha?A senhora veja o que se pode fazer que eu assino o que for preciso, mas ajude o meu Rafael, por favor, dê-lhe uma mãozinha, que ele é um bom menino, só é preciso saber levá-lo e eu não quero que ele pense que é uma criança abandonada, sem eira nem beira, eu sei que já se passou um ano mas a Ermelinda até disse que ficava com ele e ficou?Mas ele não se pode portar assim mal que é uma vergonha?
Mas o meu Rafael não está abandonado, pois não?

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 166
Ano 16, Abril 2007

Autoria:

Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto
Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto

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