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O Cinderelo

Houve um tempo em que a Câmara Municipal do Porto respeitava os criadores e os agentes culturais e em que a formação de públicos para a cultura, apesar de constituir um labor difícil, quase «clandestino» e de fraca rentabilidade político-mediática (os resultados demoram tempo a surgir?), era considerada uma prioridade.
Nesse tempo, que agora parece à distância de uma eternidade, em cada escola da cidade «residiam» um encenador/a e um coreógrafo/a que dinamizavam grupos de teatro e de dança. O modelo seguido, muito por inspiração e influência do sociólogo José Madureira Pinto, assentava no que eu designo por democracia cultural: tentativa de familiarização dos estudantes com a maior diversidade possível de códigos de leitura das expressões culturais e artísticas, interiorização, na verdade, por um labor que associa as figuras do criador, mas também a do animador e mediador cultural (papéis que cada coreógrafo/a e encenador/a «residentes» nas escolas teriam de desempenhar em simultâneo) de categorias de percepção que familiarizem os receptores com as linguagens, tornando-os verdadeiros praticantes culturais, condição essencial, afinal, para o próprio exercício de uma cidadania plena.
Hoje, numa aula, lembrei-me de um dos «incidentes» que, regra geral, estão associados ao saudável tumulto criativo. O pensamento alternativo e insurgente não tem medo do imprevisto, pelo contrário, já que o utiliza como ocasião de aprendizagem e de transformação. Mas vamos à peripécia. Numa das escolas, o trabalho de base do encenador com os alunos resultou num singelo e original guião dramatúrgico, de seu nome «O Cinderelo». Tratava-se, na verdade, de uma criativa inversão dos papéis de género patentes na ordem social e cultural reproduzida pelos contos infantis, arrastando, além do mais, uma nova visão sobre a sexualidade juvenil. Ora, no clímax da peça, o cinderelo, que se encontrava com a fogosa amada numa discoteca em pleno acto amoroso, tem de partir, precocemente, antes de se transformar em abóbora às badaladas da meia-noite, para grande desgosto da ardente jovem. Esta, perante o indesejado imprevisto, decide colocar mãos à obra para tentar encontrar o seu amado em todos os lugares da noite do Porto, levando o único objecto que aquele deixara: um preservativo. A incessante busca ? com um final feliz - consistia, está bom de ver, na introdução do preservativo em vários pénis, até o molde se ajustar em perfeição, denunciando o cinderelo fugitivo. Escusado será dizer que o guião provocou uma pequena grande revolução na escola, com a indignação da Associação de Pais e de alguns professores mais conservadores e o embaraço do Conselho Directivo. A Câmara assumiu, como lhe competia, um papel de mediação, tentando reapropriar o conflito para chegar a um novo ponto de partida, o que foi conseguido. Limada alguma linguagem, o Cinderelo foi à cena e a consagração chegou ainda antes do final da primeira apresentação.
Moral da história: só quando se quebra a ordem hegemónica (ou a regra, ou a lei) é que a ordem hegemónica se revela, na sua plenitude.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 164
Ano 16, Fevereiro 2007

Autoria:

João Teixeira Lopes
Deputado do Bloco de Esquerda; Sociólogo. Univ. do Porto.
João Teixeira Lopes
Deputado do Bloco de Esquerda; Sociólogo. Univ. do Porto.

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