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América transgredida?

Num momento da história social, cultural e política em que a produção de discursos sobre igualdade, participação cívica, cidadania e diferença está no centro dos debates colectivos, urge reflectir, educativamente, sobre o lugar que a sexualidade, e a sua vivência e expressão plurais, tem vindo aí a ocupar. O "Transamerica", o conhecido filme de Duncan Tucker de 2005, não é um filme sobre sexualidade, em sentido restrito, e isto se estivermos a pensar e a falar de um conceito de sexualidade que geralmente é associado ao de procriação ou ao de conjugalidade. Neste filme, a questão da sexualidade tem mais que ver com os vários e distintos processos de construção do self, sendo por isso um fenómeno que participa na subjectivação da identidade pessoal, social, sexual e de género. Por outras palavras, o sujeito não se relaciona sexualmente sem dar sentido aos seus actos e estes são construídos culturalmente, quem o diz é Michel Bozon (2002). Há portanto um carácter de mutabilidade cultural, histórica e social subjacente à sexualidade humana e o argumento do "Transamerica", apesar do já cansativo enredo hollwyoodesco, permite justamente analisá-lo com algum grau de profundidade.
O filme assalta-nos com a apresentação e a produção de um corpo, disfarçado ainda, obrigado à máscara mas a querer ser visível: afinal quais são as oportunidades de relação com um corpo escondido? O investimento sobre si próprio, sobre o corpo de si e para-si, recorrendo à expressão de Sarte, e que a personagem central do filme nos mostra, é como se nos estivesse a dizer: eu sou o meu corpo, sou este investimento, esta invenção a que me sujeito para ser no mundo, para me identificar e ser identificado. O "Transamerica" é por isso um filme com ligeiros recortes biográficos ? conta a história de uma transsexual onde as questões da sua relação com um filho se impõem ? porque trata do modo como uma pessoa singular enfrenta as suas situações de vida, mais ou menos complexas, a respeito da construção de um percurso identitário. Importa por isso situarmo-nos numa concepção alargada e subjectiva de sexualidade, ao mesmo tempo que a encaramos como uma trajectória de vida, sempre diferenciada, de expressões diversas e também com finalidades de diferente ordem. Ao entendermos a sexualidade enquanto trajectória de vida, estamos a admitir que se trata de um fenómeno que é vivido em diálogo com os contextos pessoais, sociais e institucionais onde a acção humana tem lugar e onde, precisamente a partir da acção, diferentes relações afectivas com esses contextos são distintamente expressivas de pessoas e de grupos sociais. O conceito de trajectória de vida, de acordo com o sociólogo Machado Pais (2001) inclui o conceito de vida familiar, o de vida escolar, o de vida profissional, etc. A cada uma destas esferas de vida podemos remeter distintos feixes de trajectórias, embora conectados entre si. Pode-se deste modo considerar que nenhum «feixe» da existência humana é construído isoladamente. A vida sexual, a sexualidade humana é, em termos globais, um processo de desenvolvimento da identidade pessoal e social, através do qual cada um de nós se reconhece no que pensa, no que faz, no que sente, no que deseja e procura.
A visualização do filme "Transamerica", enquanto dispositivo pedagógico, permite-nos ainda reflectir numa concepção de corpo social que ultrapassa, grandemente, a sua concepção de raiz biológica. Permite-nos além disso observar em que sentido o corpo, por ser lugar social, é produtor de autonomia e de agência crítica. Bree, a personagem principal do filme, pergunta num dos momentos da história: "E lá por eu estar a fazer alterações no meu corpo, isso não me dá o direito de pertencer a uma igreja?". O corpo é uma realidade multidimensional e é uma componente inseparável do self, do si-mesmo, que produz e que procura produzir autonomia individual. Querendo ou não, sendo mais ou menos explícito, este filme afasta-se de concepções naturalizadas de sexualidade e, só e apenas por isso, pode tornar-se interessante vê-lo. Não estaremos, certamente, em face de uma obra artisticamente marcante, mas haverá críticos que melhor poderão ajuizá-lo nesse sentido. De qualquer modo, e porque procura encarar os processos de construção da identidade (sexual e de género) como processos de relação social construídos no âmbito de uma história e de uma cultura, é um filme que questiona as concepções de norma e de desvio que historicamente têm vindo a definir a sexualidade enquanto discurso, regra e prática. E faz este tipo de abordagem a partir do conflito que é, para alguém, construir e definir uma identidade pessoal na superação de determinismos biológicos: torna-se, por isso, claro que a questão da sexualidade e, particularmente, da identidade do sujeito, também precisam de ser perspectivadas enquanto direitos pessoais, sociais e políticos. Assim sendo, e numa altura em que as sociedades ainda reproduzem modelos sacralizados de corpo e de sexualidade, pode valer a pena interrogarmos a ética discursiva que sobre estes aspectos temos vindo a produzir e o lugar para onde, realmente, a queremos levar no futuro.

Bibliografia:

  • Pais, José Machado (2001) Ganchos, Tachos e Biscates. Jovens, trabalho e futuro. Porto: Ambar
    Bozon, Michel (2002) Sociologie de la sexualité. Paris: Nathan

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 164
Ano 16, Fevereiro 2007

Autoria:

Paulo Nogueira
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
Paulo Nogueira
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto

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