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Consumir o "outro" como prática de cidadania
A época das festas de fim-de-ano é propícia para refletirmos sobre as faces perversas da mais difundida política contemporânea de cidadania ? o multiculturalismo. Não é difícil perceber que o multiculturalismo e suas práticas de celebração das diferenças foram rapidamente absorvidos pelo capitalismo contemporâneo para legitimar novas estratégias de convocação ao consumo. Na era da supremacia do mercado e da mídia, negros, gays, idosos e tantos outros grupos identitários vêm sendo objeto de uma política de representação que visa reabilitá-los no cenário cultural, seja como cidadãos dignos e merecedores de atenção e respeito, seja como consumidores. Nessa movimentação, tanto suas histórias, como sua condição de vida e suas imagens são estetizadas e colocadas em circulação no supermercado cultural das identidades.
Fotos em revistas, outdoors e peças publicitárias de todo o tipo têm sido pródigas em lançar mão da composição politicamente correta em que despontam invariavelmente uma pessoa negra, uma branca, uma oriental e mais algum tipo humano "mestiço" ou exótico. Tal imagem tem sido amplamente empregada para vender quase tudo, especialmente vagas em escolas, assinaturas de revistas e pacotes turísticos, bem como para convocar ao ingresso em partidos políticos e realizar investimentos em projetos sociais.
O "outro" (e seu exotismo) vende especialmente nesta época de Natal e fim-de-ano, quando, dentre tantas escolhas possíveis, presenteamos com barbies caribenhas, árabes, africanas, oferecemos em pôsteres artísticos fotos das crianças indigentes que habitam as regiões mais pobres do planeta, ou compramos CDs e porta-retratos com imagens de mulheres muçulmanas, indígenas ou africanas, todas elas maltratadas e andrajosas. Transforma-se a compra de mercadorias em ato político e aplaca-se a consciência não apenas ajudando quem precisa, mas, quem sabe, até conseguindo reconhecer alguma beleza e alguma dignidade nesses "outros" deserdados da sorte. Introduz-se também o make-up para pessoas "de cor", e bonequinhas negras para garotinhas que já começavam a pensar que todos os bebês "normais" nascem loirinhos! O mercado turístico não fica atrás, e suas ofertas insólitas na forma de "tours em favelas" e atrações similares aumentam sua receita com a prática de um abominável voyeurismo da pobreza e da desgraça, estas sempre oferecidas em versões selecionadas e tornadas, de alguma forma, palatáveis, para que não choquem demasiadamente, afugentando os clientes.
As redes de mercantilização e consumo investem maciçamente no discurso da responsabilidade social e das políticas de inclusão. E a compra de mercadorias é revestida de uma aura de ato político, em que o consumo acontece não apenas para mostrar o que se tem e o que se pode, mas também para ajudar o próximo. Eis que surgem as camisetas, pulseiras, bonés e bandas para cabelo anunciando que você está engajado na luta contra o câncer infantil, de mama, a Sida, o fumo, a discriminação aos gays, a exploração sexual de meninas. Em cada uma destas campanhas, de certa forma, também consome-se o "outro".
O problema nessa aproximação entre o capitalismo consumidor e o multiculturalismo não está, obviamente em reconhecer "o outro" como carente e necessitado de atenção, em visibilizar sua marginalidade para que se invista na melhoria de sua condição e na conquista da igualdade a que tem direito. O problema reside no fato de que, subjacente a essa estratégica política mercadológica, está uma política de representação assentada sobre o pressuposto de que a lógica do sistema é correta, coerente e boa. As ações solidárias que surgem numa cidadania desse tipo parecem ser adequadas e desejáveis quanto mais forem rápidas, efetivas, performativas. A tática recomendável é a ação imediata, a atitude que faz diferença. Nesse tipo de cidadania, a própria democracia se apresenta como espetáculo, estilo e consumo. "Just Do It!" Nessa nova ordem, não se pergunta como e por que alguns grupos se tornaram deficitários, carentes, excêntricos. Não se pergunta também por que precisam ser supridos, ajudados, protegidos, tolerados, e tampouco quais táticas permitiriam intervir nas decisões em prol de seus interesses. Tais questionamentos, se ampla e corajosamente formulados e debatidos, contribuiriam para percebermos que o capitalismo consumista não está apenas implicado nesta curiosa e cruel prática de cidadania − em que consumir o "outro" se consagra como ação de reconhecimento da igualdade −, mas também está implicado na produção desse "outro".

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 163
Ano 16, Janeiro 2007

Autoria:

Marisa Vorraber Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil
Marisa Vorraber Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil

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