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Vidas que (se) contam

«Tenho o gosto do segredo», afirmou um dia Jacques Derrida, tentando assim traduzir a sua dificuldade em dizer «nosso tempo», em aceitar ver a sua identidade definida pela pertença a uma família, a um grupo, a um território, a uma comunidade ou a um Estado. Trata-se de uma afirmação, à primeira vista, desconcertante e de certo modo paradoxal, proferida por alguém, que, na verdade, soube sempre assumir os incómodos de uma «presença social»intensa e profundamente comprometida com o bem comum. O que o filósofo pretendeu expressar é que a motivação para a vinculação de carácter comunitário, essencial ao processo de desenvolvimento humano, pressupõe o direito originário à não vinculação e à dissidência. Uma declaração assim subversiva corresponde, com efeito, à afirmação de um poder subjectivo, devendo como tal ser encarada como um acto de liberdade, como um corajoso gesto de cidadania. Estamos no fundo perante aquilo a que Michel Meyer chamou de «arte de insolência», essa exigência de afirmação de si mesmo que perturba o «contrato hipócrita» e a mentira escondida em tantas ficções sociais. A insolência é a diferença que interrompe, é a interpelação que incomoda, é, enfim, o poder de ser plenamente outro. Sem a liberdade para dizer que não se é da família, que não se pertence, que não se é membro, sem a possibilidade de afirmação de um mundo pessoal, a vida em comunidade perde todo o seu vigor cívico e toda a sua razão de ser.
Exalto nesse sentido a relevância humana de toda a acção pedagógica, acreditando que, na pluralidade das suas dimensões e contextos de intervenção, escolares e extra-escolares, a educação desempenha um papel crucial na promoção da competência subjectiva de todas as pessoas, seja qual for a sua situação na vida. Chamo competência subjectiva à aptidão para ser plenamente autor, actor e narrador da sua história de vida. O que, por outro lado, implica a salvaguarda de condições históricas muito concretas que permitam garantir a vitalidade democrática do espaço público enquanto espaço de apresentação, de acção e de participação individual. O respeito pela privacidade, pelo segredo pessoal, é indissociável do poder de revelação livre. Ora, este poder carece de actualização permanente sob pena de esmorecer ou mesmo desaparecer. É preciso arriscar a exposição pública, ousar «dar a cara», assumir uma causa e abraçar um projecto, recusando render-se à fatalidade de um destino.
Em suma, ser pessoa significa ser sujeito de uma história que, por ser absolutamente própria, tanto pode recusar-se à revelação pública como escolher expor-se. Mas será que todas as pessoas possuem, efectivamente, esse poder de escolha? Julgo que esta é uma questão decisiva no nosso tempo. No quadro de uma dinâmica social vinculada ao ideal de uma cidadania inclusiva e solidária, o apelo à participação individual não pode ser feito na ignorância das condições existenciais que objectivamente configuram as diferentes estratégias de vida. Sobretudo, como acontece nas nossas sociedades, quando essas condições condenam tantas pessoas a uma vida sem escolhas, marcada pela fome, pela violência, pelo sofrimento e pela privação dos mais elementares direitos de cidadania. Segundo a lógica de certos discursos populistas de teor neo-liberal, parece que, em última análise, tudo depende do exercício livre de uma vontade que nasce autónoma, desde logo e para sempre, dotada de capacidade electiva, empreendedora e performativa. Desvaloriza-se assim a real soberania de cada sujeito, a sua vocação para o auto-aperfeiçoamento que faz da aprendizagem uma condição essencial de humanização e socialização e que, a meu ver, justifica a centralidade da educação no conjunto das políticas sociais. Nesse sentido, a par de uma valorização efectiva da educação escolar, importa hoje investir na promoção de tempos e espaços educativos novos, suficientemente diversos e plurais. Entre as múltiplas respostas que podem ser desenhadas no âmbito de uma pedagogia social, sublinho aqui o papel da Educação Social, ou seja, da educação na área da acção social, entendendo que a construção de uma sociedade solidária e inclusiva requer uma atenção prioritária às situações de vulnerabilidade, de modo a que todas as pessoas (se) possam contar, respondendo em comunidade na sua condição de «seres fora do comum», sujeitos de um segredo, de uma narrativa, de uma liberdade.

Nota:
Por lapso, num texto anterior, publicado no jornal de Outubro de 2006, aparece o título «Educação e presenção social» que, obviamente, não faz qualquer sentido. A expressão original era «presença social», correspondendo a um conceito que tenho vindo a desenvolver no âmbito de um trabalho centrado nas novas competências de cidadania.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 163
Ano 16, Janeiro 2007

Autoria:

Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto
Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto

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