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Sócrates e Cavaco unidos pelo neoliberalismo

A que se deve o sucesso da vossa economia?
"É simples, exportámos os economistas neoliberais".
(Arnaldo Bocco, director do Banco Central da Argentina)

Cavaco Silva iniciou entre nós a aplicação da doutrina neoliberal. No campo educativo, que aqui mais nos interessa, essa política traduziu-se na entrega dos muitos milhões de contos recebidos da União Europeia, para educação e formação, aos interesses privados. Dessa soma fabulosa de dinheiros não restou qualquer vestígio, qualquer infra-estrutura, a não ser algumas dezenas de pequenas e frágeis escolas profissionais e alguns processos judiciais inconclusivos. Apoiado por Roberto Carneiro, Cavaco Silva lavrou o campo onde pensou que medraria o ensino superior privado de excelência, capaz de deixar para as massas o velho ensino superior público. Mas a «sociedade civil» portuguesa é fraca e incompetente como se viu. 
Sócrates e o PS, dão agora continuidade ? também no campo educativo ? a esta ambição neoliberal iniciada por Cavaco. O que um começou e quis fazer no ensino superior quer agora o outro completar nos ensinos básico e secundário. Sócrates e Cavaco comungam da mesma fé neoliberal e não acreditam que o sector público da educação possa produzir o «capital humano» que o seu modelo económico e social exige. Revelar-se-á o sector privado mais capaz nos ensinos básico e secundário do que tem sido no ensino superior? Não creio. Temo que no fim do processo, não sobre nem público nem privado competente. Restarão ilhotas de excepção  para famílias de excelência, rodeadas por um sistema misto, público e privado, sem um mínimo de decência. Mas o ideário neoliberal não é o desenvolvimento de um sistema desigual?
A política do governo socialista insere-se no movimento internacional que aplica fielmente o que se vem designando por políticas neoliberais.  A nova direita socialista partilha com as velhas direitas o conceito, lançado nos anos oitenta por Margareth Thatcher, de que não há outro caminho a não ser o  que é indicado pelo receituário neoliberal.
As políticas neoliberais têm sido vendidas aos eleitores como «modernas» e «modernizadoras da sociedade». Como novidades. Imperativos impostos pelo desenvolvimento natural da economia e da política global. Mas, historicamente, o neoliberalismo é filho, e continuador, do velho liberalismo. Este surgiu e desenvolveu-se nos séculos XVII e XVIII cumprindo então um papel importante: rompeu e liquidou as monarquias absolutas. Estas estavam fundadas na ideia de que havia uma hierarquia social natural concedida pelo poder divino, e sustentada na concepção teocrática do poder (o poder vindo da divindade e não do povo).
Baseado na ideia de que os seres humanos são, por natureza, livres e iguais, o direito liberal rompeu com a ideia do direito divino dos monarcas e, portanto, com a hierarquia estabelecida. A submissão cega ao poder e à vontade do rei, foi substituída pela noção de direito civil, onde as leis [regras] valem para todos e a todos obrigam. 
Este primeiro liberalismo pensou o Estado como um organismo activo na organização de toda a sociedade. O Estado, pouco a pouco, foi reconhecendo a todo o povo os direitos de cidadania e constituiu-se como órgão capaz de regular, melhorar e defender a vida dos cidadãos,  competindo-lhe assegurar a todos a igualdade de direitos e deveres.
Mas desde cedo os interesses dos mais poderosos se sobrepuseram  aos direitos da maioria. O Estado liberal transformou-se num instrumento ao serviço dos interesses egoístas dos mais poderosos. Permitiu lutas fratricida e a violência entre estados e nações. O desenvolvimento do «capitalismo selvagem», desregulado, originou crise atrás de crise, destacando-se destas a «Grande Depressão de 1919». Ainda antes da 2ª Guerra Mundial alguns países entenderam a necessidade de superar este liberalismo que colocava os interesses individuais acima do «bem comum». Após a 2ª Guerra Mundial, alguns estados centraram a sua atenção sobre os interesses básicos das populações e sobre o seu bem estar. Até à década de 70 do século XX, a par de  um surto de desenvolvimento, quer no plano das medidas sociais aplicadas nos países mais desenvolvidos, quer no plano dos princípios consagrados e aceites pela comunidade internacional, os direitos sociais, económicos, culturais e políticos dos povos desenvolveram-se.
A crise petrolífera de 1973 veio acentuar contradições da economia capitalista de então e baixar as taxas de lucro do capital. Foi neste contexto que surgiram pensadores monetaristas, de que se destacam Milton Friedman, nos EUA, e Friedrich August Von Hayek, na Grã-Bretanha, defendendo a ideia de que os Estados já não podiam manter o «estado social» desenvolvido após a 2ª Guerra Mundial. Em vez da garantia dos direitos sociais defendiam, na prática, o regresso a um  liberalismo radical em que cada um tratasse de si e o Estado fosse reduzido apenas a um simples regulador de eventuais conflitos. O poder devia ser transferido do Estado, isto é, dos cidadãos, para o poder económico [eufemísticamente designado por «os mercados»].
Estas teorias ganharam força com a eleição de Margareth Thatcher na Inglaterra e depois com a eleição de Ronald Reagan nos Estados Unidos. A queda da União Soviética favoreceu as condições sociais necessárias à implantação da nova doutrina. 
Foi neste contexto histórico, aqui sumariamente descrito, que surgiu o que se vem designando por  Neoliberalismo. Este não constitui um corpo teórico à parte da tradição liberal, mas radicaliza aspectos do liberalismo que os liberais clássicos manuseavam com cautelas e algum pudor. O Neoliberalismo é hoje a extrema-direita do liberalismo.
Simbolicamente, este novo liberalismo reproduz formas de poder que nos fazem lembrar as velhas monarquias absolutas de direito divino. Os novos reis [com vassalos em governos de muitos países] são os titulares dos poderes que governam o mundo. Também eles reclamam o poder absoluto por direito divino. Não em nome do Deus reconhecido pelo Vaticano, mas em nome do deus filho do mercado. O Estado é um obstáculo a este novo poder, como o são todos os que reneguem a nova religião. Por isso os neoliberais exigem «reformas» que desmantelem o Estado e disciplinem os rebeldes.
Para o neoliberalismo, a sociedade ideal é constituída pela minoria de eleitos que manda, e pela maioria que lhe deve obediência.  Esta nova religião, baseia-se na mais crua competição e no mais puro malthusianismo. Separar de acordo com a doutrina. Os bons dos maus. Com mérito e sem mérito. Os excelentes e os outros. Oficiantes da divindade, fiéis e infiéis. Os servidores do poder e a plebe. Os que dão a esmola e os que a recebem. Os cidadãos e a populaça, são alguns dos elementos estruturantes do novo paradigma «civilizacional». Um paradigma onde é fundamental que sejam poucos os chapéus e muitas as cabeças. De modo a que ter ou não ter chapéu não dependa da cabeça mas de ter o egoísmo bastante e a agressividade suficiente para lutar sem tréguas por um dos chapéus disponíveis. A desigualdade é a base em que assenta a nova doutrina. Será isto que o povo quer?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 162
Ano 15, Dezembro 2006

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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