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Alguém explica?

A inovação não pára de me espantar. Durante anos integrei, ? não no sentido matemático do termo, mas no sentido de procurar honrar, na prática ?  na minha turma de 1º ciclo do ensino básico, o que outros, meus superiores, tinham assumido, quando assinaram a declaração de Salamanca.
Já tinha integrado antes, sem o saber e sem o acordo. Integrei ?avant la lettre? causando dores de cabeça aos colegas que eram referidos como do ensino especial, e que por serem professores do 1º ciclo com algo de especial, eram levados a desintegrar.   Mas, muitas vezes entendíamo-nos e, não seguindo à letra o que nos era recomendado, trabalhávamos juntos, no mesmo espaço. E explicávamos aos pais a vantagem desta integração sem ordem superior mas com acordo tácito; vantagens para as crianças, vantagens para nós. Depois de algumas resistências iniciais de quem tinha filhos que não eram considerados aptos para o especial, mas que eram ditos normais, as relações tornaram-se elas também normais, entre pais normais e especiais, entre crianças normais e especiais, entre professor normal e especial.
Os meus alunos e eu aprendemos coisas novas com estes colegas, crianças e adulto, ditos especiais, que eu acolhia e integrava na turma que me era atribuída.
Um dia, estes meus colegas do 1º ciclo ainda que especiais transformaram-se por decreto em colegas das equipas (de apoio educativo) para crianças com necessidades educativas especiais. Tinha a vantagem, agora sim, de ser a própria estrutura a decidir que os meus colegas me propusessem parceria para trabalhar em equipa no ensino das crianças com estas tais necessidades educativas especiais. Não era difícil explicar a presença esporádica de outro professor ou outra professora na turma, já que, para nós, só as siglas tinham mudado.
Para mim, parecia-me que tínhamos avançado um pouco na organização da monodocência coadjuvada, quando se tratava de promover a escola inclusiva.
A estrutura organizativa previa mesmo uma situação de integração que passava por uma solução muito particular: como percebíamos, os meus colegas professores do 1º ciclo especializados em comunicação e eu, as crianças com surdez profunda precisavam de estar entre outros surdos, que se exprimam com a sua língua, a língua gestual. Enquanto as crianças surdas ouvintes recorrem à língua portuguesa oral para conceptualizar e chegar à escrita, as crianças surdas profundas precisam da língua portuguesa gestual para conceptualizar e desenvolver a escrita. Tanto umas como outras enquadradas, para o efeito, por professores designados agora como do 1º ciclo do ensino básico. Estes professores são formados para trabalhar em monodocência com as crianças com a idade escolar para este ciclo. Alguns que aceitaram especializar-se, com dinheiro público, na área da comunicação, tornaram-se assim os mais indicados para exercer a monodocência com crianças surdas, em pequenas turmas, onde a língua franca passa a ser a gestual, mas integradas na escola regular, para continuar a possibilitar o contacto frequente com o outro.
Deixava de integrar na minha sala uma ou outra criança com surdez profunda, mas sabia-a bem entregue na mão de um colega de 1º ciclo, especializado em comunicação. Surdos adultos percebiam as vantagens. E logo que pais ouvintes de crianças surdas percebiam que a língua natural do seu filho ou da sua filha é a língua gestual, tornava-se claro que era lógico organizar núcleos para crianças surdas em algumas escolas da região, para conseguir a organização racional das turmas.
Recentemente criou-se um grupo de docência para crianças com necessidades educativas especiais. Previu-se que os colegas especializados numa área se encontram com as crianças que precisam de professores especializados naquela área, seja qual for a sua formação base. Desde há pouco, por mero efeito de concurso, passaram a existir núcleos onde turmas de crianças surdas de 6 ou 7 anos continuarão a ter um professor especializado em comunicação, mas com formação base para leccionar um grupo de disciplinas no 3º ciclo ou no secundário. Outros núcleos, com crianças surdas do 2º e 3º ciclo, passaram a contar com educadoras de jardim-de-infância especializadas em comunicação, mas deixaram de ter professores do seu nível de ensino.
Que dizer agora aos pais? Que crianças surdas de 6 anos não precisam de professores do 1º ciclo para aprenderem a ler e a escrever? Que crianças surdas do 2º ciclo não precisam de professores do 2º ciclo? Será que as crianças surdas vão testar a derradeira inovação que consiste em criar um corpo único de educadores-professores para o jardim-de-infância e o ensino básico, independentemente da formação inicial de cada educador e professor e das necessidades educativas de cada aluno?
Alguém explica?


  
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Edição:

N.º 158
Ano 15, Julho 2006

Autoria:

Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela
Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela

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