Página  >  Edições  >  N.º 158  >  Culpados, procuram-se!

Culpados, procuram-se!

A proposta de alteração ao Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, recentemente apresentada pelo ministério da educação, desencadeou um verdadeiro abalo telúrico no seio da classe docente, cujas ondas de choque continuam a ecoar nas várias arenas e ?fóruns? de debate para o efeito organizados. A magnitude do impacto foi sentida com tal violência que alguns vaticinaram mesmo o fim da espécie docente. Não surpreende, por isso, que numa atmosfera em que os professores se consideram, por tudo e por todos, ?enxovalhados?, ?denegridos?, ?aviltados?, ?achincalhados, ?perseguidos?, ?toureados?, ?coisificados?, ?desautorizados?, alvo de um ?ataque cerrado? e sacrificados como ?bodes expiatórios? de todos os males que afectam a educação(1), eles sintam necessidade de expressar a sua indignação, de afirmar publicamente a sua inocência, de pugnar pelo bom nome e dignificação da profissão que abraçaram. Contudo, num momento em que a poeira e a cinza ainda estão no ar, discernir para além do alcance do nosso nariz pode revelar-se um exercício bastante difícil. Nestas circunstâncias, é fácil sermos seduzidos por fogachos esparsos e não vermos a luz intensa que nos encandeia, é ainda possível sermos ensurdecidos por sons menores e não captarmos aqueles que verdadeiramente nos podem ferir os tímpanos. É talvez menos compreensível que os professores, julgando-se acossados por vários ?inimigos?, disparem em várias direcções procurando ansiosamente apanhar substitutos para assumir o papel incómodo de ?bode expiatório? em que, reconheça-se, injustamente os investiram.
Assim, por exemplo, quando analisamos as cerca de duas centenas e meia de ?opiniões? emitidas pelos participantes no ?fórum de discussão? criado pela NetProf a propósito da alteração do Estatuto da Carreira Docente (ver http:///www,netprof.pt/servelet/forum?Tema=NPL0132&ID=495) (2), encontrámos indicadores que sugerem estarmos perante um daqueles fenómenos de sedução mediática que impedem de ver o essencial, apesar de, no âmbito do referido fórum, algumas vozes avisadas alertarem para os riscos daquela sedução. Efectivamente, verificamos que, não obstante a proposta de alteração ser constituída por um documento que contempla cerca de cento e cinquenta artigos, que se desenvolvem ao longo de mais de meia centena de páginas, envolvendo, entre muitas outras dimensões contraditórias (3), delicadas e complexas, a ponderação dos resultados dos alunos e as taxas de abandono na avaliação dos docentes, a grande maioria das ?análises? reduziram o ?debate? à questão da avaliação dos professores pelos pais, aspecto que na proposta, além de não ter merecido mais do que uma simples alínea (alínea h do artigo 46º), surge mediado pela avaliação da direcção executiva, constituindo apenas um dos oito indicadores a serem contemplados por este interveniente no processo de avaliação dos docentes.
Se aquela quase obsessão quanto aos receios que a ?apreciação? realizada pelos pais pode ter sobre a ?independência? do trabalho dos professores se me afigura algo exagerada, embora não totalmente descabida, já a procura desenfreada de ?bodes expiatórios? alternativos não só não resolve os problemas dos professores, como seguramente não resolve os problemas da educação. Fazendo eco de uma análise bacoca e simplista hoje muito na moda, sobretudo no discurso de alguns tecno-pedagogos de geração espontânea, sempre prontos a aviar receitas mágicas para esconjurar a ?crise da escola?, alguns professores parecem querer resolver o problema da injustiça de que se sentem vítimas procurando culpados alternativos que os substituam. Na lista dos potenciais candidatos ao lugar aparecem, além  da ministra e seus colaboradores, os sindicatos, os jornalistas, alguns ?colegas? menos solidários, os professores do ensino superior e, acima de tudo, os pais. Numa das muitas opiniões expressas no site acima identificado pode ler-se: ?No nosso país a educação não está bem, mas a culpa não é nossa, CULPEM-SE OS PAIS?(4). Acusar, generalizadamente, as famílias de negligentes, de abandonar os filhos à porta da escola, de se desresponsabilizarem pela sua educação, de só se preocuparem com os resultados no final do ano, pode constituir um discurso muito popular, mas é seguramente um discurso tão redutor e faccioso como aquele que elege os professores e o seu corporativismo como os principais responsáveis pelos males que afectam a educação. Haja bom senso!

Notas:
1) Estas são algumas das expressões utilizadas pelos professores na reacção à publicação da proposta de alteração do Estatuto da Carreira Docente e aos discursos oficiais que a enquadraram.
2) Consulta realizada em 6 de Junho de 2006. Na contabilização das posições expressas considerámos as ?opiniões? e as ?respostas? por estas induzidas.
3) Atente-se, por exemplo, na flagrante contradição entre a retórica oficial da qualidade da educação e a impossibilidade objectiva de os professores investirem em qualquer tipo de formação pós-graduada.
4) Maiúsculas no original.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 158
Ano 15, Julho 2006

Autoria:

Virgínio Isidro Martins de Sá
Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho
Virgínio Isidro Martins de Sá
Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo