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Memória do colonialismo

... continua-se a exaltar, de forma acrítica, o carácter ?positivo? da colonização portuguesa em África e no mundo, teimosamente identificada (e justificada) com uma suposta ?missão civilizadora? de Portugal neste domínio, apesar do desmentido estrondoso dos seus resultados calamitosos (96% de analfabetos na maioria das colónias, em 1950).

Decorridos mais de trinta anos sobre a independência das antigas colónias de África e a Revolução de Abril, persiste-se, com demasiada frequência, na distorção ou mesmo na omissão pura e simples das diversas vertentes do colonialismo português, quando se fala da história contemporânea de Portugal.
Atitude legitimadora daquela forma de opressão que é reforçada pela sua caracterização como ?menos violenta? que as suas congéneres estrangeiras, qualidade alegadamente decorrente da ?vocação miscigenadora? dos colonizadores portugueses, tal como é defendida pelo luso - tropicalismo de Gilberto Freire ao arrepio da realidade[1].
?Esquece-se?, assim, a violência permanente da dominação colonial portuguesa, que explorou e sujeitou milhões de africanos à opressão social e racial, ao trabalho escravo/forçado, ao obscurantismo, à miséria moral e material, através da sua reificação generalizada e consequente exclusão da cidadania, com a redução da sua esmagadora maioria à condição indígena, desprovida de quaisquer direitos [2].
Pelo contrário, continua-se a exaltar, de forma acrítica, o carácter ?positivo? da colonização portuguesa em África e no mundo, teimosamente identificada (e justificada) com uma suposta ?missão civilizadora? de Portugal neste domínio, apesar do desmentido estrondoso dos seus resultados calamitosos (96% de analfabetos na maioria das colónias, em 1950)[3].
Em França, um número considerável de historiadores não hesitou em erguer-se contra a Lei de 23 de Fevereiro de 2005, com que o Estado pretendia impor aos programas de investigação universitária e escolares o reconhecimento do papel positivo da presença francesa no ultramar, nomeadamente na África do Norte e o enaltecimento da história e dos sacrifícios das tropas francesas nas colónias[4]. Como o massacre de Sétif, perpetrado pelo exército francês contra o povo argelino, em 8 de Maio de 1945 (quando terminava a II Guerra Mundial)?!
Para Claude Liauzu, um dos principais animadores do movimento de contestação desta lei, ela «impõe uma espécie de história-memória canónica, contrária à liberdade de pensamento que se encontra no coração da laicidade e contrária às regras da investigação científica»[5], privando os descendentes dos colonizados de qualquer passado. Reacção compreensível num país onde, em 1960, teve lugar uma importante mobilização anti-colonialista em torno do Manifesto dos 121 contra a guerra da Argélia, encabeçado por Jean-Paul Sartre.
Pelo contrário, no nosso país, com excepção de alguns casos isolados, foi muito tardia a contestação da dominação colonial, bastando, a propósito, lembrar que só no seu V Congresso, em 1957, o Partido Comunista Português se pronunciou pelo direito dos povos colonialmente oprimidos à autodeterminação[6], quando a luta de libertação nacional dos colonizados já percorrera um longo caminho nos continentes asiático e africano desde finais da II Guerra Mundial.
Apesar do trabalho incontornável de autores como Alfredo Margarido, Isabel Castro Henriques e Adelino Torres, muito resta por fazer acerca da memória do colonialismo, condição do progresso do conhecimento histórico e do desenvolvimento positivo das relações com os povos das antigas colónias e seus descendentes em Portugal.

Notas:

[1] Exceptuando Cabo Verde (com 69,6% de mestiços) e S. Tomé e Príncipe (com 7,15%), nas restantes colónias os mestiços não ultrapassariam 0,9% da população, em 1950, atingindo 1,1% em Angola, em 1960 (BENDER, Gerald J., Angola sob o Domínio Português(Mito e Realidade), Lisboa, Sá da Costa, 1980, pp. 60-61). Sobre o luso-tropicalismo vide MARGARIDO, Alfredo, A Lusofonia e os Lusófonos: Novos Mitos Portugueses, Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2000, pp. 22-27.

[2] Regulada pelos Decretos n º 12533, 16.473 e 39.666, de 23 de Outubro de 1926, de 6 de Fevereiro de 1929 e de 20 de Maio de 1954, respectivamente, até à sua revogação pelo Decreto-lei n º 43.893, de 6 de Setembro de 1961, sob o impacto da guerra de libertação em Angola.

[3]GUIMARÃES, José Marques, A Política ?Educativa? do Colonialismo Português em África Da I República ao Estado Novo(1910 ? 1974), Porto, PROFEDIÇÕES Lda./Jornal a Página,  2006, p. 113.

[4] LIAUZU, Claude, «Une loi contre l?histoire», Le Monde diplomatique, Paris, Avril 2005, n.º 613, p. 28.

[5]Idem, ibidem.

[6]Contrastando com o facto de, no II Congresso Mundial da Internacional Comunista ? Internacional em que o PCP viria a filiar-se ? realizado em 1920, terem sido aprovadas as Teses sobre a questão nacional e colonial, sob proposta de Lenine.


  
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Edição:

N.º 157
Ano 15, Junho 2006

Autoria:

José Marques Guimarães
Universidade Aberta, Lisboa
José Marques Guimarães
Universidade Aberta, Lisboa

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