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Do Lugar do Eu

O jovem professor preparou a aula amorosamente. Queria os seus alunos envolvidos, implicados na leitura, queria-os emocionados, inquietos e perturbados, queria aguçar-lhes a inteligência e a sensibilidade. Por isso, tinha escolhido um poema que não estava no manual, para os afastar daquelas perguntas que os manuais fazem e que não são perguntas verdadeiras:

CRAWL
Às vezes, entranhando-me num espelho, consigo dar
nele duas ou três braçadas sucessivas.
[Luís Miguel Nava, Rebentação, Poesia Completa (1974-1994)]

Tinha ouvido falar de um leitor-crítico (e não um crítico-leitor!), preparado para ler o mundo e nele participar sem complexos, atento às artimanhas da propaganda, seguro das suas incertezas, certo do seu direito à voz. O jovem professor preparou perguntas com P grande, daquelas que fazem tremer as paredes dos edifícios das consciências adormecidas, soçobrar os preconceitos, daquelas que ameaçam com a revolução a qualquer instante. Uma por uma as viu crescer no papel. Interrogava-se: estarei certo? será para isto que me pagam? que consequências incontroláveis poderei provocar? e se algum deles quiser saber quem foi o Luís Miguel Nava, como e onde morreu, como viveu, como amou? Sorriu, ao lembrar-se do primeiro romance do Frederico Lourenço, pode um desejo imenso, e daquele Camões que lá aparece, pela pena do Nuno Galvão. E se o incluísse na lista de livros para negociação do Contrato de Leitura? Podia ser interessante discuti-lo na aula, no momento em que lessem e estudassem a poesia de Camões... Voltou às perguntas. Afinal, não desistiria de nenhuma. E, quem sabe, só seriam precisas as três primeiras, se os alunos tomassem conta da aula a seguir? Voltou a sorrir, sonhador...
Chegou cedo à aula, antes do primeiro toque, excitado, nervoso, expectante. Trazia na pasta mais uma mão cheia de poemas. Poderiam os alunos querer ler outros, depois de acariciado, interrogado, desventrado e sossegado aquele. Os alunos começaram a entrar, ora em pequenos grupos faladores, ora isolados e silenciosos. A aula começou. O professor distribuiu o poema e pediu-lhes que o lessem em silêncio. Depois, ele próprio o leu em voz alta, lentamente, saboreando cada palavra, fazendo sobressair sentidos e sensualidades. Chegou, finalmente, a primeira pergunta:
? Alguém quer dizer alguma coisa importante sobre este poema? Uma coisa que seja mesmo importante... Uma dúvida real, uma pergunta sobre algum aspecto estranho, uma observação sobre alguma utilização invulgar de uma palavra... O que quiserem...
Silêncio. Lá atrás, uns risinhos...
? Então? Ninguém quer dizer nada? Não acredito que não tenham nada para perguntar, para dizer... Nuno?.. Rosa?... Tiago?... Alguém?...
O Pedro levantou o braço, disciplinadamente. O Pedro gostava de participar nas aulas, era um aluno atento e aplicado.
? Sim, Pedro, podes começar tu...
? Ó professor: o que eu estranhei mais neste poema é que vem lá o sujeito poético mas não tem um tu!


  
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Edição:

N.º 157
Ano 15, Junho 2006

Autoria:

António Branco
Universidade do Algarve
António Branco
Universidade do Algarve

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