Página  >  Edições  >  N.º 156  >  Velhas e Chocalheiros no Planalto Mirandês

Velhas e Chocalheiros no Planalto Mirandês

Do fundo dos tempos de uma Europa medieva em construção, em que se confrontavam, por um lado, uma doutrina cristã de implantação recente e manifestos pressupostos de intolerância, por outro, populações campesinas em grande parte fechadas sobre os seus modelos ancestrais (profundamente arreigados e imbuídos de crenças mágicas e naturalistas), chegaram até nós terríficas personagens, estranhas e grotescas, cuja singular persistência só encontra explicação num comunitarismo intenso e enraizado e, ainda, no secular isolamento de certas regiões do interior do país.
Entendidas como consubstanciando valências pagãs e até demoníacas, a simbologia primeva que as envolve, radica em arcaicos mitos de regeneração do ?ano velho? que finda: ou, se quisermos, da regeneração periódica do tempo e do mundo, vistos como cíclicos  e renováveis.
Encarnam ?velhos? e ?velhas?, representações antropomorfas de um ano/tempo desgastado e degenerado, ?carochos? e ?chocalheiros?, exprimindo por gritos e chocalhadas, catársicas e energéticas regenerações, ?caretos? e ?zangarrões?, representantes da transformação que a transição sustenta, ?demónios? e ?diabos?, simbolizando as potências do caos, enquanto canonicamente encaradas.
Constituem uma das mais exóticas e persistentes sobrevivências pagãs ligadas ao complexo simbólico entrópico e niilista, típico dos tempos anuais de transição. As máscaras de que muitos são portadores, simbolizam a transmutação, realçada pelo próprio travestismo de que dão mostra e pelas atitudes de desacato e irreverência de que dão prova.
Avatares da desordem, personificam as forças do caos (das trevas, se quisermos) que, nos perigosos mas prodigiosos tempos de passagem, reinam e dominam, desrespeitando espaços  domésticos, desregrando normas que a tradição e o senso comum consagram, assumindo até atitudes de especial licenciosidade, corporizadas em roubos, insolências e assédios, mais ou menos rituais, às raparigas casadoiras.
Tauromórficas nos ?chocalheiros? da Bemposta, de Val de Porco e ainda no desaparecido ?chocalheiro de Bruçó?, as máscaras de madeira, por exemplo, (elementos funcionais de identificação demoníaca), têm sido encaradas, por alguns autores, como decorrências, quase directas, da simbologia do touro, tão fértil nalgumas culturas mediterrâneas como a egípcia ou a minóica. Contudo, a simbólica dos chifres não se relaciona apenas (e obrigatoriamente) com o touro mas sim, de uma forma mais abrangente, com o macho: constituindo os mesmos, muitas vezes, símbolos operativos do poder fecundante.
Também a serpente, símbolo fálico da fecundidade, e principalmente da regeneração, surge aqui frequentemente. Criatura que hiberna, logo morre e renasce ciclicamente. Renascendo dos mortos é, portanto, símbolo da imortalidade que a perpétua recriação proporciona. E, neste contexto, libertar-se todos os anos da pele velha, que deixa abandonada por campos e baldios, mais acentua, ainda, o seu carácter de perene regeneração.
Carácter regenerativo de que a salamandra igualmente participa. Também esta morre e ressuscita todos os anos; logo também ela é símbolo da vida que se repete e perpetua. Aliás, a utilização esotérica da mesma (bem como da serpente) como símbolo arcano (e frequentemente hermético), impregnará fortemente o conhecimento gnóstico e iniciático mediterrâneo e oriental, nos últimos cinco milénios.
Do mesmo modo podemos encarar as laranjas que o ?chocalheiro da Bemposta? apresenta espetadas nos chifres e, a ?sécia de Tó?, transporta como adorno. Não apenas, como assinala Rodrigues Mourinho, como ?símbolo dos frutos que se desejam para o novo ano que começa?, mas, igualmente, como arquétipo dos frutos de inverno: aqueles que representam a vida, na época em que a natureza se apresenta como inerte e decadente.
E se as laranjas simbolizam a vida no tempo da morte, castanhas e bugalhos representam, naturalmente, os frutos de inverno: sintonizados com a morte, nessa altura dominante.
Símbolo usual da morte é, ainda o negro, que o ?chocalheiro da Bemposta? apresenta na indumentária e o ?farandulo? e a ?velha de Vila Chã?, na cara enfarruscada de carvão. Negro que se tenta difundir mascarrando, igualmente, as moçoilas que passam ao alcance.
São expressões grotescas e comunitárias de cosmovisões arcaicas, que o cristianismo estigmatizou e contribuiu para olvidar. Quiçá de um tempo em que a ?grande-mãe? (deificação panteísta dos capacidades matriciais da terra) e as potências celestes (expressões múltiplas ou unificadas dos poderes fecundantes do céu), possuíam ainda como que um equilíbrio, que tempos posteriores foram subvertendo, mas que persiste ainda imanente (como que em vestigial plano de vibração memorial), no inconsciente colectivo do povo que somos.
De um tempo em que a fertilidade criadora, que ciclicamente gerava o novo mundo, era simbolizada por rituais catalisadores que, interpretados por personagens sagrados (em tempos idos ainda mais sagrados), reinterpretavam na terra a cosmogonia divina.
Situação, que, aliada às funcionalidades mais actuantes e socialmente marcantes dos ritos masculinos de passagem à idade adulta, foi permitindo a singular perpetuação destas práticas (hoje insólitas e, à primeira vista, incompreensíveis), desaparecida que foi, já, a razão de ser do seu sentido e significado primordiais.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 156
Ano 15, Maio 2006

Autoria:

Aurélio Lopes
Professor convidado da Escola Superior de Educação de Santarém
Aurélio Lopes
Professor convidado da Escola Superior de Educação de Santarém

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo