Página  >  Edições  >  N.º 156  >  Sobre o acto de estudar

Sobre o acto de estudar

Estudar é também e sobretudo, pensar a prática e pensar a pratica é a melhor maneira de pensar certo.

Qualquer bibliografia deve reflectir uma intenção fundamental de quem a elabora: a de atender ou a de despertar o desejo de aprofundar conhecimentos naqueles ou naquelas a quem ela é proposta. Se falta, nos que a recebem, o ânimo para a usar, ou se a bibliografia em si mesma, não é capaz de desafiá-los, perde-se, então, a intenção fundamental referida. A bibliografia torna-se um papel inútil, entre outros, perdido nas gavetas das escrivaninhas.
Essa intenção fundamental de quem faz a bibliografia exige um triplo respeito: a quem ela se dirige; aos autores citados e a si mesmo. Uma relação bibliográfica não pode ser uma simples cópia de títulos, feita ao acaso, ou por ouvir dizer. Quem a sugere, deve saber o que está a sugerir e por que o faz. Quem a recebe, por sua vez, deve ter nela, não uma prescrição dogmática de leituras, mas um desafio. Desafio que se tornará mais concreto à medida que comece a estudar os livros citados e não só a lê-los por alto, como se apenas os folheasse.
Estudar é, realmente um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura crítica sistemática. Exige disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a. Isto é, precisamente, o que a «educação bancária»(1) não estimula. Pelo contrário, a sua tónica reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade. A sua «disciplina» promove a disciplina da ingenuidade  face ao texto e não a indispensável capacidade critica.
Este procedimento ingénuo ao qual o educando é submetido, a par de outros factores, pode explicar as fugas ao texto, que fazem os estudantes, cuja leitura se torna puramente mecânica, enquanto, pela imaginação, se deslocam para outras situações. O que se lhes pede, afinal não é a compreensão do conteúdo, mas a sua memorização. Em lugar de ser o texto e a sua compreensão, o desafio passa a ser a memorização do mesmo. Se o estudante consegue fazê-lo, terá respondido ao desafio.
Numa visão crítica, as coisas passam-se diferentemente. O que estuda sente-se desafiado pelo texto na sua totalidade e o seu objectivo é apropriar-se do seu profundo significado.
Esta postura crítica, fundamental, indispensável ao acto de estudar, requer de quem a ele se dedica:

1. Que assuma o papel de sujeito deste acto.

Isto significa que é impossível um estudo sério se o que estuda se põe face ao texto como se estivesse magnetizado pela palavra do autor, à qual emprestasse uma força mágica. Se assume um comportamento passivo, «domesticado», procurando apenas memorizar as afirmações do autor. Se se deixa «invadir» pelo que o autor afirma. Se se transforma numa «vasilha» que deve ser enchida pelos conteúdos que ele retira do texto para pôr dentro de si mesmo.
Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando, o escreveu. É perceber o condicionamento histórico-sociológico do conhecimento. É buscar as relações entre o conteúdo em estudo e outras dimensões do conhecimento. Estudar é uma forma de reinventar, de recriar, de reescrever ? uma tarefa de sujeito e não de objecto. Desta maneira, não é possível a quem estuda, numa tal perspectiva, alienar-se ao texto, renunciando assim à sua atitude crítica face a ele.
A atitude crítica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante do mundo, da realidade, da existência. Uma atitude de «adentramento» com a qual se vá alcançando a razão de ser dos factos cada vez mais lucidamente.
Um texto estará tão melhor estudado, quando dele se tenha uma visão global, a ele se volte, delimitando suas dimensões parciais. O regresso ao livro para esta delimitação aclara a significação da sua globalidade.
Ao exercitar o acto de delimitar os núcleos centrais do texto que, na sua interacção, constituem a sua unidade, o leitor crítico irá surpreendendo todo um conjunto temático, nem sempre explicitado no índice da obra. A demarcação destes temas deve atender também ao referencial de interesse do sujeito leitor.
Assim é que, diante de um livro, este sujeito leitor pode ser despertado por um trecho que lhe provoca uma série de reflexões em torno de uma temática que o preocupa e que não é necessariamente a de que trata o livro em apreço. Suspeitada a possível relação entre o trecho lido e a sua preocupação, é o caso, então, de fixar-se na análise do texto, buscando o nexo entre o seu conteúdo e o objecto de estudo sobre que se encontra a trabalhar. Impõe-se-lhe uma exigência: analisar o conteúdo do trecho em questão, na sua relação com os precedentes e com os que a ele se seguem, evitando, assim, trair o pensamento do autor na sua totalidade.
Constatada a relação entre o trecho em estudo e a sua preocupação, deve-se separá-lo do seu conjunto, transcrevendo-o numa ficha com um título que o identifique com o objecto específico do seu estudo. Nestas circunstâncias, ora pode deter-se, imediatamente, em reflexões a propósito das possibilidades que o trecho lhe oferece, ora pode seguir a leitura geral do texto, fixando outros trechos que lhe possam aportar novas meditações.
Em última análise, o estudo sério de um livro como de um artigo de revista ou jornal implica não somente uma penetração crítica no seu conteúdo básico, mas também numa sensibilidade aguda, numa permanente inquietação intelectual, num estado de predisposição para a busca.

2. Que o acto de estudar, no fundo, é uma atitude frente ao mundo

Esta é a razão pela qual o acto de estudar não se reduz à relação leitor-livro, ou leitor-texto.
Os livros, em verdade, reflectem o confronto dos seus autores com o mundo. Expressam este confronto. E mesmo quando os autores fujam da realidade concreta estarão expressando a sua maneira deformada de enfrentá-la. Estudar é também e sobretudo pensar a prática e pensar a pratica é a melhor maneira de pensar certo. Desta forma, quem estuda não deve perder nenhuma oportunidade, nas suas relações com os outros, com a realidade, para assumir uma postura curiosa. A de quem pergunta, a de quem indaga, a de quem busca.
O exercício desta postura curiosa termina por torná-la ágil, de que resulta um aproveitamento maior da própria curiosidade.
Assim é que se impõe o registo constante das observações realizadas durante uma certa prática; durante as simples conversações. O registo das ideias que se têm e pelas quais se é «assaltado», não raras vezes, quando se caminha só por uma rua. Registos que passam a constituir o que Wright Mills chama de «fichas de ideias».
Estas ideias e estas observações, devidamente fichadas, passam a constituir desafios que devem ser respondidos por quem as regista.
Quase sempre, ao transformarem-se na incidência da reflexão dos que as anotam, estas ideias remetem-nos para leituras de textos com que podem «instrumentar-se» para seguir na sua reflexão.

3. Que o estudo de um tema específico exige do estudante que se ponha, tanto quanto possível, a par da bibliografia que se refere ao tema ou ao objecto da sua inquietude.

4. Que o ato de estudar é assumir uma relação de diálogo com o autor do texto, cuja mediação se encontra nos temas de que ele trata.
Esta relação dialógica implica na percepção do condicionamento histórico-sociológico e ideológico do autor, nem sempre o mesmo do leitor.

5. Que o acto de estudar pede muita humildade.

Se o que estuda assume realmente uma posição humilde, coerente com a atitude crítica, não se sente diminuído se encontra dificuldades, as vezes grandes, para penetrar na significação mais profunda do texto. Humilde e crítico, sabe que o texto, na razão mesma em que é um desafio, pode estar mais além da sua capacidade de resposta. Nem sempre o texto se dá facilmente ao leitor.
Neste caso, o que deve fazer é reconhecer a necessidade de melhor «instrumentar-se» para voltar ao texto em condições de entendê-lo. Não adianta passar a página de um livro se a sua compreensão não foi alcançada. Impõe-se, pelo contrário, a insistência na busca do seu entendimento. A compreensão de um texto não é algo que se receba de presente. Exige trabalho paciente de quem por ele se sente problematizado.
Não se mede o estudo pelo número de páginas lidas numa noite ou pela quantidade de livros lidos num semestre. Estudar não é um acto de consumir ideias, mas de criá-las e recriá-las.

Texto escrito em 1968, no Chile

1. Sobre o conceito de  «educação bancária», ler, por exemplo,  o livro «Pedagogia do Oprimido», de Paulo Freire


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 156
Ano 15, Maio 2006

Autoria:

Paulo Freire

Paulo Freire

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo