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Educar na cidadania

Enquanto brilham para fora, os olhos do Marcos são meus guias, e neles fundo o meu olhar, para me ir refazendo. Mas se o seu olhar se volta para dentro, a viagem interior que enceta concede-me idêntico deambular de rumos novos, que percorro se quiser e se ele quiser.
Sempre que o Marcos fica a olhar-se, pressinto transformação, sínteses, socializações primárias? E fico apreensivo. Sei que tudo o que o Marcos precisa saber para saber quem é, maugrado o livre arbítrio de que for capaz, vai aprendê-lo nos encontros e desencontros que a vida lhe reserva. Vai modelar-se nas atitudes que observar. Irá crescer e aprender-se nos actos e demissões das pessoas que partilharem os seus caminhos. E há-de encontrar as pessoas dos seus professores.
Preocupa-me que haja professores que não consigam ensinar. Mas preocupa-me ainda mais o que ensinam. Ainda que de tal possam não ter consciência, transmitem valores. E, em função do deu sistema de crenças e valores, vão impregnando os alunos de solidariedade ou umbiguismo, de autonomia ou conformismo. Já dizia o Jung que, por força destes desmandos, todos nascemos originais e morremos feitos cópias...
Já deparei com personalidades moldadas numa concepção imutável de sociedade. Mas também conheci professores que consideravam ser possível prever a evolução das dinâmicas sociais e o modelo de cidadão adulto, vinte anos após a ?formatação? cívica operada pela escola. Amiúde, leio em manuais escolares a expressão ?educar para a cidadania?. Se bem entendo o sentido da frase, tratar-se-á de moldar o indivíduo numa lógica de sequencialidade regressiva, treinando-o, agora, para um posterior desempenho social, que se crê, por sua vez, ajustado a um determinado modelo de sociedade futura. Exactamente no estilo do faz-de-conta-que-já-somos-para-sermos-quando-formos, que acaba sendo um exercício que é fim em si próprio.
A educação será para a cidadania ou na cidadania? Não se trata de uma subtil diferença ente a palavra na e a palavra para. A primeira ser contracção de preposição e artigo e a segunda se apresentar como preposição simples são questões de somenos importância. Importante é o espírito da coisa, pelo que prefiro a expressão ?educar na cidadania?, no hic et nunc do drama escolar. Fazemo-nos no que fazemos. Aprendemos cidadania, como tudo o resto, no devir que já somos no aqui e agora.
Mas onde estão os espaços de exercício de uma liberdade responsável? Se nem os professores a exercem, como poderão ensiná-la? Assim como é absurdo pensar que, nas universidades, se ensine ?métodos activos? em aulas caracterizadas pela passividade, também é inútil pensar que a cidadania pode ser ensinada em aulas expositivas amaciadas pela análise de dilemas, ou por via de discursos de moralidade duvidosa e eficácia nula. Não vamos lá com sermões?
Há escolas onde tudo é negação da cidadania. Nessas escolas, a solidão dos professores é da mesma natureza da solidão dos alunos, que passam de sala em sala, no ritmo pautado por uma campainha, e deparam com professores afáveis ou permissivos, uns exigentes, outros autoritários (para estes, parafraseando a Patrícia, o ser humano é nada, somente as regras são importantes e devem ser seguidas a qualquer preço). Não saberão que a cidadania, como a pedagogia, se aprende a par e é exercida com os outros? Se os professores estão sozinhos, encerrados em salas de aula, entregues às suas certezas e disfarçando angústias, que espaços de exercício de cidadania as escolas disponibilizam?
Manda a verdade que diga que a cidadania pode ser exercida mesmo por profissionais que estão sozinhos, mas não cultivam a solidão. Há escolas onde a cidadania acontece. Numa reunião de Assembleia, um miúdo, que fora transferido para a nova escola há menos de um mês, pediu a palavra pela primeira vez. E disse:
- ?Para que é que estamos para aqui a discutir? Na outra escola, as professoras diziam o que devíamos fazer? e pronto!
O miúdo já tinha feito cinco anos de ?educação par a cidadania?, mas não sabia que ainda estava a começar a tirar o curso de ?educação na cidadania?. A ?lição? seguinte foi-lhe ministrada por um colega mais antigo na escola, quando contestou uma decisão dos professores:
- "Eu não gostei nada de o professor ter feito as equipas. Ainda por cima deu barraca, só houve zaragata e não houve futebol mesmo nenhum".
Ou quando a Marta, no calor de uma discussão, sem abdicar do exercício de cidadania, manifestou compreensão de que o estatuto de professor é o estatuto de professor e não se confunde com o estatuto de aluno:
- "Ó professora, eu acho que já percebi. A senhora já aprendeu isto antes de mim, não foi?..."
Não se pense que estas situações de ?educação na cidadania? são exclusivas de uma escola isolada. Há muitas e excelentes experiências de ?educação na cidadania?, como prova uma carta de um professor-poeta de nome Carlos, que me atrevo a citar:
?Tudo mudou. As crianças já propõem questões, lançam ideias. Acreditam que a opinião delas também vale. E encontraram objectivos: ajudar meninos com dificuldades, ajudar o professor a resolver os casos de mau comportamento e a preparar reuniões. Agora, a escola é ainda mais deles. Estes momentos têm-me feito reflectir muito sobre o percurso que trilhámos até aqui. Pensar em como a Assembleia no início era uma coisa aborrecida e enfadonha. Como alguns se fartavam de abrir a boca! Insisti, por saber que estava no rumo certo. Aos poucos, deixei de ser eu a dirigir as reuniões. Comecei a sentar-me, discretamente, a um canto. Inicialmente, ia metendo a minha colherada, para que a reunião não descambasse em confusão. Cada vez menos. Hoje, participo como qualquer um dos outros. Os outros são as crianças. Para muitos professores, é difícil conceber que há outros para além de si mesmos?.


  
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Edição:

N.º 155
Ano 15, Abril 2006

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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