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Elas ocupam poucos cargos de chefia

Decorridas mais de três décadas sobre a revolução que quis unir todas as portuguesas e portugueses em torno de uma sociedade democrática e igualitária, a discriminação das mulheres continua a marcar variados domínios da vida laboral, política e social.
Na quase totalidade dos sectores de actividade as mulheres continuam a ganhar salários inferiores aos homens, mesmo desempenhando as mesmas funções profissionais ou sendo mais qualificadas.
Na política, a percentagem das mulheres passou de uma média de 8% de eleitas em 1975 para 19,6% em 2003. Ainda assim, no actual governo, entre 53 elementos com cargos governativos apenas cinco são mulheres.
A nível social, tem-se verificado um papel de crescente destaque nas mais variadas áreas, mas ainda não foi completamente derrubada a construção social baseada nas diferenças de sexo, geradora de hierarquização e de papéis sociais desiguais.
No mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, a PÁGINA procura neste dossier fornecer alguns elementos para a discussão em torno das questões do género e da (des)igualdade entre homens e mulheres em Portugal.

Apesar dos avanços na legislação, desigualdade entre homens e mulheres persiste em Portugal

Segundo o relatório ?Igualdade de Género em Portugal ? 2003?, da autoria da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, 11,5% das mulheres portuguesas não tinha, em 2001, qualquer grau de instrução, contra 6,3% dos homens. Apesar desta situação, as mulheres representavam, em 2002, 67,1% da população habilitada com o ensino superior.
Este aumento do nível de escolaridade e de qualificação das mulheres é bem elucidativo da forma como as mulheres têm vindo a conquistar um papel de crescente relevo na sociedade portuguesa. Nas últimas três décadas, elas têm vindo não só a recuperar o atraso educativo que marcou a sua condição ao longo do período da ditadura, mas também a ocupar áreas de formação tradicionalmente masculinas como jornalismo, arquitectura e urbanismo, ciências veterinárias, medicina ou ciências dentárias, contando actualmente com uma das maiores percentagens de mulheres investigadoras e de professoras universitárias da Europa (48%).
Apesar desta evolução, elas continuam a ocupar poucos cargos de chefia. De acordo com dados relativos a 1995, 53,4 por cento das mulheres portuguesas doutoradas estavam colocadas em lugares de professor auxiliar, 32,6 por cento eram professoras associadas e apenas 6,7 por cento eram professoras catedráticas, situação que configura uma dificuldade latente no acesso aos lugares de topo da carreira académica.
A somar à dificuldade de progressão na carreira, as mulheres portuguesas debatem-se também com a desigualdade salarial.
De acordo com dados de 2002 divulgados pelo Ministério do Trabalho, o ganho médio mensal das mulheres com o grau de licenciatura correspondia a 66,7 por cento do dos homens, enquanto a desigualdade de ganhos a nível dos quadros superiores representava um valor de 70 por cento. A nível global, segundo a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, entre 1995 e 2000 as mulheres auferiam cerca de 77 por cento da remuneração média mensal dos homens. Em 2002 registou-se uma melhoria, atingindo o valor correspondente a 80,5 por cento.
Mas não é apenas em Portugal que a desigualdade salarial e de oportunidades se verifica. A União Europeia também reconheceu recentemente, no seu relatório anual sobre a igualdade entre homens e mulheres, que as mulheres ganham, em média, menos 15 por cento do que os homens por cada hora de trabalho. Além disso, o crescimento do emprego entre as mulheres continua concentrado, sobretudo, em actividades e profissões consideradas essencialmente femininas, facto que reforça a ?segregação no mercado de trabalho".
Segundo as estatísticas europeias, o número de mulheres é duas vezes superior à dos homens em sectores como a administração pública, a educação, a saúde e o trabalho social. As mulheres estão também presentes em maior número em empregos a meio tempo: 32,6 por cento das mulheres, contra 7,4 por cento dos homens. Para Bruxelas, esta situação pode reflectir ?preferências pessoais, mas também é o resultado do facto de as mulheres se dedicarem mais, proporcionalmente, aos membros da família?.
As dificuldades de conciliar a vida profissional e privada acabam por prejudicar as carreiras das mulheres, que representam apenas 32 por cento dos quadros e 10 por cento dos membros dos conselhos de administração das empresas. Nos grandes grupos, apenas 5 por cento dos directores-gerais são mulheres.
Joaquina Jordão, responsável pela Gestão de Programas da Organização Internacional do Trabalho, afirma que um dos principais factores para a discriminação salarial assenta no ?não entendimento do princípio da igual remuneração para trabalho igual ou de igual valor?, que se traduz na ?atribuição de salários inferiores e condições mais desfavoráveis, designadamente de progressão?.
Mas não só. Esta responsável aponta ainda outros ?factores a montante?, como a ?segregação profissional ? resultante da persistente concentração das mulheres e dos homens em determinadas profissões -, a manutenção dos estereótipos e representações acerca da existência de sectores ou especializações para mulheres e para homens e a conciliação da carreira profissional com outras responsabilidades familiares, que acabam, na opinião de Joaquina Jordão, por ?condicionar as opções profissionais das mulheres?.

Igualdade de ?cima para baixo?

A conciliação entre o trabalho e a vida familiar continua a constituir uma dificuldade tanto para homens como para mulheres. Mas sobretudo para as mulheres. De acordo com o mesmo relatório europeu, o primeiro a cobrir a totalidade dos 25 membros da União Europeia, os homens cumprem, em média, menos de 40 por cento do trabalho em casa e entre 25 e 35 por cento dos cuidados dispensados às crianças com idades compreendidas entre os 6 e os 8 anos.
Em Portugal, e segundo os resultados do Inquérito à Ocupação do Tempo, conduzido pelo Instituto Nacional de Estatística em 1999, as mulheres dedicavam cerca de 4 horas diárias ao trabalho doméstico e aos cuidados à família, ao passo que os homens se limitavam a 1,5 horas. O total de horas de trabalho, considerando o pago e o doméstico, ascendia, em média, a 12h11m para as mulheres e a 10h49m para os homens.
No ?Inquérito às Famílias no Portugal Contemporâneo (1997-2005)? realizado pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, Sofia Aboim, investigadora associada do ICS, analisou o capítulo relativo às ?orientações normativas da conjugalidade?.
Nele, a autora refere que do ponto de vista do ?ideal abstracto? (nível de questionamento a partir do qual se pode aferir a legitimidade normativa da igualdade de género na conjugalidade), constata-se que ?tanto no trabalho profissional como no doméstico predomina a norma de igualdade absoluta?, com 70,6 por cento das inquiridas a considerar que o casal deve dividir todas as tarefas domésticas e 77,9 por cento que ambos devem trabalhar fora de casa.
No entanto, sublinha Sofia Aboim, é ?importante sinalizar que mais de metade das inquiridas (55,3%) elege a igualdade doméstica como ideal sem procurar concretizá-la no seu dia-a-dia?.
Num outro estudo intitulado ?As Mulheres em Portugal: Situação e Paradoxos?, a socióloga Virgínia Ferreira, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, refere que o processo pelo qual a igualdade entre sexos foi instituída em Portugal ?marca a nossa sociedade de modo muito paradoxal?, explicando que ela ?ocorreu de um dia para o outro, ?de cima para baixo?, em vez de ter tido lugar lentamente e ?de baixo para cima?, em relação íntima e atenta aos efeitos de outras mudanças sociais importantes para a emancipação das mulheres?.
Apesar de não constituir uma justificação quanto baste, este factor pode ser decisivo para explicar o relativo afastamento das mulheres da vida política. E, consequentemente, dos lugares de decisão. No actual governo, por exemplo, estão representadas apenas quatro mulheres em três ministérios: duas ministras (com as tutelas da Educação e da Cultura) e três secretárias de Estado (dos transportes, da reabilitação e da Saúde).
No parlamento, as mulheres ocupam 25,6 por cento dos lugares, num total de 60 deputadas. Relativamente aos partidos com assento na Assembleia da República, os únicos dois partidos paritários são o Bloco de Esquerda e o Partido Ecologista ?Os Verdes?. Logo a seguir aparecem o Partido Socialista (36,3%) e o Partido Comunista Português (25%). Os únicos partidos com uma representação inferior a 10 por cento são o Partido Social Democrata (9,3%) e o CDS-Partido Popular (8,3%). 

O ?mainstreaming? de género

A Constituição da República Portuguesa, aprovada em 2 de Abril de 1976, estabelece o princípio da igualdade de direitos entre mulheres e homens no seu artigo 13º. Nele se refere que ?todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei? e que ?ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social?.
Vinte e cinco anos depois de aprovada a Constituição, a igualdade entre homens e mulheres está plenamente consagrada no plano legislativo. Mas será que isso basta?
Heloísa Perista e Alexandra Silva, no estudo ?Impacto em Função do Género ? Avaliação de Medidas de Política?, publicado no âmbito do II Plano Nacional para a Igualdade, explicam que ?a eliminação das desigualdades passa pela definição e implementação de políticas específicas orientadas para públicos específicos?, e, sobretudo, por ?uma redefinição da forma de se fazer política?.
É assente nesta filosofia que surge, a partir dos anos 90, a abordagem integrada da igualdade de género, ou ?mainstreaming? do género. Este conceito tem como objectivo incluir uma perspectiva de género em todo o processo de construção política e nas práticas sociais. Em poucas palavras, a abordagem integrada da igualdade de género, explicam as autoras, ?não se centra nos problemas das mulheres mas nas relações entre homens e mulheres em todas as esferas sociais e para benefício de ambos?.
Em 1996, a Comissão Europeia referia-se já à necessidade de uma ?nova parceria entre homens e mulheres? que exigiria ?uma transformação cultural dos comportamentos individuais e das práticas colectivas, associada a uma acção política decidida (?).?
Na opinião de Isabel Romão, da Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres, ?até agora todo o trabalho de promoção da igualdade tem sido feito quase exclusivamente por mulheres, para melhorar uma situação que, de um modo geral, só interessa às mulheres?.
Esta perspectiva de constatação e correcção dos desequilíbrios não encarava a forma como as relações entre homens e mulheres determinam as estratégias politicas de criação de igualdade de direitos e de oportunidades. É nessa medida, explica Isabel Romão, que a abordagem integrada da igualdade de género ?permite um olhar mais direccionado para as necessidades das pessoas e gerar processos estruturantes e duradouros, tentando reunir condições para que a igualdade não esteja apenas presente na legislação, mas que se torne concreta?.
Apesar de as abordagens poderem evoluir, o facto é que ?a perda de influência social e económica das mulheres é uma realidade?, diz Regina Marques, do Movimento Democrático de Mulheres. Em entrevista que pode ser lida na página 37, esta dirigente associativa explica porquê.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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