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"Não basta saber muito de Física, é preciso saber criar o gosto pela aprendizagem nos alunos"

Regina Gouveia, professora e poetisa, à conversa com a PÁGINA

Regina Gouveia é professora de Física na Escola Secundária Carolina Michaelis, no Porto. Licenciada em Físico-Químicas pela Universidade do Porto (UP) e Mestre em Supervisão pela Universidade de Aveiro, dedica uma parte da sua carreira à formação de professores e colabora pontualmente com o Departamento de Física da Faculdade de Ciências da UP.
Autora de livros didáticos para o ensino da Física, Regina Gouveia tem também publicado na área da poesia e da ficção. No âmbito do Ano Internacional da Física, foi recentemente contemplada com o prémio Rómulo de Carvalho, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Física, e agraciada pelo Presidente da República, Jorge Sampaio.
Nesta entrevista, explica porque razão considera o ensino da Física pouco popular entre os alunos portugueses, critica algumas das mais recentes medidas do Ministério da Educação e aponta algumas sugestões para incentivar o gosto pela aprendizagem das ciências.

Que motivos encontra para que a Física seja, em geral, tão mal amada pelos alunos portugueses?

Em primeiro lugar porque ela é menosprezada a nível superior. De outra forma, não se explicaria que a Física se tivesse tornado numa disciplina opcional.
Em segundo lugar porque se ensina mal a Física, transformando-a numa mera disciplina de ensino de fórmulas matemáticas e não na compreensão dos fenómenos físicos. Esta ideia é expressa por várias pessoas. Tenho feito alguma investigação neste campo e acho que os professores, embora nem sempre de forma consciente, têm alguma culpa nesse sentido. O simples facto de o professor disponibilizar todos os dados num exercício, por exemplo, faz com que o aluno não se dê ao trabalho de perceber o que lhe é pedido mas se limite apenas a aplicar uma fórmula que encaixe a sua resolução.
Depois, a actividade experimental nas escolas decaiu muito. Embora se tenha dado um bom incentivo através do projecto Ciência Viva, penso que os professores foram perdendo a capacidade de o mobilizar.
Alguma coisa tem de ser feita. Portugal está na cauda da OCDE no que se refere aos níveis de literacia científica, pelo que se torna urgente incentivar a aprendizagem das ciências. O que está a acontecer actualmente é um autêntico retrocesso.

Que passaria, então, pelo reforço da componente experimental?

Sim, mas uma componente experimental que seja encarada seriamente, não como se de uma receita de cozinha se tratasse. Muitas vezes as experiências não passam de tarefas rotineiras, onde nem sempre se percebe bem o seu alcance. Para isso mais vale não fazê-las. A actividade experimental tem interesse se for investigativa, se levar os alunos a reflectir sobre o que vai acontecer, a formular hipóteses, mesmo chegando à conclusão que ela estava errada. É todo este processo que gera nos alunos a vontade de querer saber mais.

As condições de segurança e a qualidade do equipamento também nem sempre estarão desse desafio?

Relativamente à segurança julgo que ela se colocará sobretudo em relação à Química. No ensino da Física esse risco está praticamente reduzido a zero. Quanto ao equipamento, considero que a nossa escola está muito bem equipada. Mas esse esforço deve partir das escolas, é para isso que existem os projectos Ciência Viva.
Actualmente vive-se alguma dificuldade na apresentação de projectos, mas na altura em que o projecto foi lançado nas escolas ? e há que destacar o papel desempenhado pelo ministro Mariano Gago ? ele significou um impulso muito significativo no ensino experimental das ciências. Se os professores e as escolas não fizerem também eles um esforço, parte dessa responsabilidade terá de lhes ser atribuída.

Não considera que a falta de saída profissional nas áreas científicas possa também ser uma das causas para esse desinteresse?

Não acredito, porque a falta de saídas, infelizmente, toca a todas as áreas. A Física, deve reconhecer-se, não é uma disciplina fácil, já que requere alguma capacidade de abstracção. Os alunos referem frequentemente que não gostam de Física porque não tem utilidade prática na sua vida, quando, se virmos atentamente, ela está presente em muitos actos diários. Mas, mais uma vez, penso que essa perspectiva é consequência de tentar reduzi-la à mera aplicação de fórmulas matemáticas. Dessa forma, o aluno não vê, naturalmente, como ela pode estar relacionada com o seu quotidiano.

Aulas de substituição não têm mais valia pedagógica

A propósito da carga horária não lectiva dos professores das áreas de ciências, sugere que esta deveria ser aproveitada em favor da preparação e optimização dessa componente experimental?

Sim, até porque por vezes são necessárias muitas horas de trabalho para optimizar uma experiência. Não seria preferível que em vez de os professores estarem muitas vezes nas escolas sem fazer nada ? porque muitas vezes é isso mesmo que se passa, é estar de braços cruzados sem fazer nada ? investissem esse tempo em trabalho conjunto, a preparar experiências, a pensar em projectos?

Defende também que as aulas de substituição seriam ?pedagogicamente muito mais correctas e eficazes? se contassem com a oferta de projectos em que os alunos se pudessem inscrever. Confirma esta ideia?

Sim, e nesta escola existem projectos, mas dir-se-ia que há uma espécie de boicote para os travar? Um espaço chamado Ciência Aberta da Física, por exemplo, que praticamente não recebe ninguém, porque não é suficientemente divulgado. Quando a maior parte admite que as aulas de substituição são uma autêntica ?tortura?, espaços como este poderiam constituir uma boa alternativa. Mas para isso seria necessário que os professores o sugerissem aos alunos, o que não acontece.
No nosso país, onde tão pouca gente tem acesso à cultura, as escolas não têm oferta de actividades na área da música, da dança, do teatro? Penso que seria uma boa forma de garantir o crescimento integral dos alunos de que tanto se fala. De que adiantam, de facto, aos alunos estas aulas de substituição, se não puderem ser preenchidas com algo de interesse?

Qual pensa ser a verdadeira intenção da ministra da educação ao decretar as aulas de substituição?

Eu acho que a ministra não tem objectivos concretos quando aprova medidas como as aulas de substituição. Porque se a intenção é acabar com o absentismo, ela não irá consegui-lo. A qualidade da ocupação dos tempos mortos dos alunos não melhorou. Só consigo ver nela uma medida economicista, porque do ponto de vista pedagógico não resulta em nada.

Sei que a escola secundária Carolina Michaelis tem alguns projectos de parceria com algumas escolas de outros países europeus. Tem conhecido boas práticas a partir do relacionamento que tem estabelecido com esses professores?

A situação não é muito melhor nos outros países. A inovação e a iniciativa partem geralmente de núcleos isolados de escolas e de professores, mas acabam por não ter repercussão e perder a sua expressão.
Em França verifica-se inclusivamente um fenómeno paradoxal: quanto melhor é a classificação atribuída a um professor na nota final de curso, menos turmas ele terá a seu cargo. Ora, teoricamente, isto é um absurdo. Por outro lado, neste país não existem horários desdobrados, o que faz com que as actividades experimentais e de investigação desenvolvidas por estes professores não sejam contabilizadas no seu horário. É muitas vezes fora do horário lectivo que tanto professores como alunos se disponibilizam para este tipo de tarefa.
Em Espanha, a situação nas escolas também não é muito diferente. Mas lá existe uma maior divulgação das ciências nas escolas, principalmente ao nível da variedade e da qualidade das publicações de carácter científico.

Trabalha também na área da formação de professores. Partindo da sua experiência, pensa que a componente prática é suficientemente valorizada na formação dos docentes?

Não. Penso que a formação de professores deveria contemplar mais a vertente prática, porque quando chega a altura de os jovens professores aplicarem os seus conhecimentos têm mais dificuldades. É que não basta saber muito de Física, é preciso saber criar o gosto pela aprendizagem nos alunos. E não é através de fórmulas matemáticas que se consegue, dessa forma a mensagem não passa.

Poetisa premiada

Escreveu um livro intitulado ?Se não fosse professora de Física? Algumas reflexões sobre práticas lectivas?. O que a levou a escrever este livro?

O título desse livro foi inspirado numa entrevista onde perguntavam a um professor o que ele gostaria de ser se não fosse? professor. Ele respondeu que gostaria de o ser. Comigo passa-se o mesmo: se não fosse professora de Física gostaria de o ser.
O livro é escrito no sentido de demonstrar que ser-se professora de Física pode ser uma actividade muito interessante, abordando práticas lectivas na perspectiva do quotidiano, demonstrando conceitos não a partir do abstraccionismo total mas a partir de experiências concretas que evoluem para fórmulas em função do nível etário dos alunos, etc. Fazer com que um miúdo saiba, por exemplo, calcular a densidade de um material a partir de um pacote de leite?

Para além da didáctica, dedica-se também à poesia e à ficção. Nesse âmbito, ganhou recentemente o prémio Rómulo de Carvalho, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Física. Sei que doou parte da verba para instituir o prémio ?Física na Escola?. Pode contar-nos melhor a história deste projecto?

Curiosamente, o prémio foi-me atribuído a mim e a outros dois professores que foram meus estagiários aqui na escola. Fiquei, por isso, duplamente satisfeita. É sinal de que algo frutificou?
De resto, disponibilizei parte do prémio no sentido de motivar os alunos para a aprendizagem da Física. Assim, ao longo dos próximos cinco anos, o melhor aluno de Física do 12º ano da escola Carolina Michaelis ? com a condição de não obter uma classificação inferior a 16 valores ? será contemplado com um prémio de 400 euros.
Apesar de já haver um regulamento, a concretização deste concurso está ainda dependente da aprovação do Conselho Pedagógico.

Foi também agraciada com a Comenda da Ordem da Instrução Pública pelo Presidente da República Jorge Sampaio?

Quando me ligaram a comunicar-me a intenção do Presidente da República em condecorar-me devo confessar que, ao princípio, julguei tratar-se de uma brincadeira. Só quando o Conselho Executivo me comunicou o facto oficialmente eu acreditei. Mas costumo dizer que essa distinção se deve, em grande parte, ao acaso, já que se não tivesse sido comemorado o Ano Internacional da Física essa distinção não me teria sido, com certeza, atribuída.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Regina Gouveia
Professora e poetisa
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Regina Gouveia
Professora e poetisa
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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