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"Isto não é uma caricatura"

Quando somos capazes de ir além da indiferença ou da revolta; quando somos capazes de fazer do que nos incomoda tema de reflexão; quando nos tornamos aptos no domínio da gramática da imagem; quando comparamos as versões sobre o que nos dizem e mostram; quando procuramos informação recorrendo a vias alternativas ? por aí passamos a fronteira que nos abre as portas da consciência e da cidadania.

Com a crise das caricaturas de Maomé por fundo, escrevo apanhando de raspão, para efeitos de análise, um aspecto da polémica. Se olharmos para trás, teremos forçosamente de reconhecer: é obra! Como é que meia dúzia de desenhos mal ?cozinhados? originam um berbicacho dos grandes, à escala planetária (os Estados Unidos da América só ficaram de fora porque já têm fogueira suficientemente abrasadora, com o vespeiro criado no Iraque)?
Claro que as caricaturas (os ?cartoons?) foram apenas o pretexto. Ou, se quisermos, o rastilho. Todo o terreno estava mais que pronto para o incêndio. Mas, ainda assim, é necessário reconhecer este poder das imagens (e, por arrastamento, dos media que as publicaram e republicaram) para provocar a ira e a violência entre os muçulmanos.
O mundo está perigoso, como temos vindo a observar. E não podemos fazer de conta que não é nada connosco. Contudo isso não é motivo para atitudes tipo ?carpe diem? que não olham para lá da linha do horizonte ou que, pior ainda, se refugiam num passado mitificado. A leitura crítica dos media é precisamente uma dessas vias a percorrer. E decisiva, aliás. Porque o mundo que nos é pintado precisa de ser entendido não como o mundo propriamente dito, mas como uma (ou, desejavelmente, várias) propostas de olhar para esse mundo.
Vem-me à mente aquele quadro pintado em 1929 por René Magritte, no qual aparece, luzidio, um bonito cachimbo e, como legenda, esta frase desconcertante: ?Ceci n?est pas une pipe?. Como recordava recentemente o autor mexicano Mário Campos, era intenção do pintor alertar para aquilo que, bem vistas as coisas, deveria ser óbvio: as pinturas, por mais realistas que sejam, não passam de interpretações e não são, nem podem ser, as coisas representadas. Magritte explicou: ?Fartaram-se de me criticar por isso. Mas [a minha pergunta era:] será que se consegue encher o cachimbo? Não, claro, visto que se trata de mera representação. Se acaso tivesse colocado a legenda ?Isto é um cachimbo?, teria escrito uma mentira?.  
Tudo o que lemos, tudo o que ouvimos, tudo o que vemos nos meios de comunicação social ? também neste jornal ? é da ordem da representação. Carece de ser percebido como tal. Isso não tira necessariamente força aos textos, aos sons e, sobretudo, às imagens ? mas relativiza-os. Vejamos o caso do cinema, por exemplo. Bastaria pensar no facto de, com frequência, um filme condensar em duas horas, histórias que duram meses ou anos e representar em escassos segundos viagens que demorariam, na vida real, largas horas ou até dias. Também as notícias de um dia resultam de processos de selecção (que deixam de lado, bem ou mal, muito mais do que aquilo que elegem para nos informar), de ângulos específicos de abordagem, de escolhas na ordenação e no destaque. Podem ser equilibradas, rigorosas, completas. Mas nunca deixarão de ser perspectivas. Nunca serão ?o que se passou no país e no mundo?.
Voltando às caricaturas: o seu poder reside no facto de suscitarem significados de uma forma simples e quase imediata. Dizem, de chofre, o que não diriam muitas palavras e frases. Mas também as palavras ditas podem ser mortais e ?blasfemas?. Escrevo no momento em que o embaixador do Irão em Lisboa dá uma entrevista à Antena 1 pondo em causa o extermínio nazi dos judeus. São declarações obscenas e insuportáveis. Mas a arte e o desafio residem precisamente em não nos acomodarmos com o que vemos, ouvimos e lemos. Quando somos capazes de ir além da indiferença ou da revolta; quando somos capazes de fazer do que nos incomoda tema de reflexão; quando nos tornamos aptos no domínio da gramática da imagem; quando comparamos as versões sobre o que nos dizem e mostram; quando procuramos informação recorrendo a vias alternativas ? por aí passamos a fronteira que nos abre as portas da consciência e da cidadania.
Com a guerra das caricaturas iremos ficar a conhecer melhor a linguagem dos ?cartoons?? A apreciar e avaliar a liberdade de expressão? A compreender melhor as razões do ?outro lado?? Ou aceitaremos, mudos e quedos, as declarações de guerra que se começam a ouvir? Será este mais um ?caso? destinado a ser engolido pelo caso seguinte?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Manuel Pinto
Professor da Univ. do Minho.
Manuel Pinto
Professor da Univ. do Minho.

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