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«AURORA» ainda raia

Não deveria ser necessário a reposição em cinema de ?Aurora? de Friederich Whlhelm Murnau (1927) para dizermos que é como o ?cinéma retrouvé?. O génio do filme, o seu papel charneira na carreira de Murnau e as enormes influências exercidas na história posterior do Cinema, para tal bastariam.
Fruto de uma conjuntura inesperada, ?Aurora? - ?Sunrise. A Song of Two Humans? no original - marca provavelmente o cume da liberdade a que pode aspirar um autor em Hollywood. Aureolado com o sucesso público que tinha sido ?Nosferatu?(1922) e das experiências sobre os movimentos de câmara em ?O Último dos Homens? (1924) ou de iluminação em ?Fausto? (1926), F.W.Murnau é em 1926 recebido de braços abertos em Hollywood por William Fox. Persuadido de ter conseguido o melhor que havia na Europa, o produtor dá-lhe, por isso, carta branca. Adaptando, com Carl Mayer, uma novela do seu compatriota Hermann Sudermann, Murnau transforma o drama conjugal, a priori modesto, em super produção. Todos os cenários são concebidos especialmente para o filme e Murnau dá livre curso ao seu perfeccionismo. Levando mais longe as inovações técnicas, como, por exemplo, o plano sequência da marcha para o pântano, que apostaríamos rodado em Steadicam e que foi filmado em rails suspensos do tecto.
A estreia do filme, a 23 de Setembro de 1927, foi um triunfo de crítica. Para John Ford, que assistiu à rodagem, foi ?o maior filme jamais produzido?. O que se confirma, dois anos mais tarde, na primeira cerimónia dos Óscares, que dá três prémios a ?Aurora?.
Nas salas, os resultados mostraram-se decepcionantes, o que trará muitas limitações para os filmes posteriores, ?Four Devils?(1928), hoje considerado perdido, e ?City Girl? (1929). O público americano terá talvez ficado surpreendido pela sofisticação de ?Aurora?. Mas também porque alguns dias após a estreia, a Warner jogou um trunfo imbatível, ?The Jazz Singer?, primeiro filme sonoro. De qualquer maneira, Murnau não teria realizado ?Aurora? como sonoro. Apenas se implicou na sonorização parcial dos seus filmes posteriores e optou por fazer mudo ?Tabu?, o seu último filme que rodou com Robert Flahyerty na Polinésia francesa. De volta aos Estados Unidos, morreu num acidente de viação em 1931. Pouco tempo antes da sua morte, escreveu numa carta querer estudar de perto o som, explicando a sua primitiva resistência: ?Nenhuma invenção que mostre valor deve ser rejeitada. O filme sonoro significa um grande progresso para o cinema. Infelizmente, veio cedo de mais: estávamos a começar a encontrar uma via para o filme mudo, estávamos a fazer valer todas as possibilidades da câmara?
O filme é muitas vezes apresentado como um geyser de inocência na noite do cinema mudo, capaz de renovar os velhos arquétipos, de se inflamar com o romance de dois camponeses cândidos, às voltas com os malefícios de uma tentadora. ?Aurora? é uma síntese miraculosa, pois consegue jogar com múltiplos antagonismos, tanto no seu espírito  como na sua matéria: Europa/América, filme de autor/indústria hollywoodiana, realismo/fantástico, dia/noite, campo/cidade, trágico/burlesco...Uma idade de ouro conseguindo ainda fazer distinguir o negro e o branco, as pulsões e o amor, o monstruoso e o cómico. Tudo parece começar, ou melhor, recomeçar, à imagem de um casal de repente despreocupado depois de ter roçado o irremediável, de um rosto patibular que depois de ter feito a barba se revela uma cara de boneco infantil.
Amanhecer supremo? Certo, mas também obcecado pelo fim de uma obscuridade que nenhum sol virá visitar - quatro anos mais tarde, ?Tabu?, o último filme de Murnau, acabará sob uma noite negra e assassina. O sol nasce no fim de ?Aurora?, mas é um efeito especial estilizado, um astro postiço, uma aurora sem amanhã. Claro, Murnau não sabe que vai morrer em breve. Mas sabe que o seu tempo está destinado a dispersar-se pois o cinema  deixar-se-á esvaziar, com angústia e excitação, pelas esporas do sonoro. O mundo caminha para uma catástrofe que, desta vez, será unicamente económica.
Por estas e por outras é que Truffaut disse que ?Aurora? era o filme mais belo da história do cinema e João César Monteiro, aquando do centenário do Cinema os ?Cahiers du Cinéma? lhe perguntaram quais os dez filmes da sua vida, respondeu: ?1º ?Aurora?, 2º ?Aurora?, 3º ?Aurora?,.......,10º ?Aurora?.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 153
Ano 15, Fevereiro 2006

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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