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Educação, instrução e cárcere

Despidas as batas de que nos orgulhávamos pelo asseio, brancas como as almas de então, vestimos as armaduras do intelecto, esgrimindo a arte da supremacia como já não nos era permitido fazê-lo com a alegria das correrias e das lutas por um pião, por um berlinde ou por um golo em balizas virtuais.

Pela porta de um primeiro dia de escola se assume o primordial confronto com a severidade dos mestres, a exigência dos êxitos, ainda ténues como muros em que se ilustram a novidade das cores em mapas, geometrias e letras desproporcionadas, mitigando curiosidades com prémios de brincadeira entre a cadência de campainhas estridentes. Nem os prodígios de imaginação, que essas idades permitem, jamais foram suficientes para nos marcarem com o ferro da consciência de que pelo menos as campainhas nos marcariam a cadência da vida. Despidas as batas de que nos orgulhávamos pelo asseio, brancas como as almas de então, vestimos as armaduras do intelecto, esgrimindo a arte da supremacia como já não nos era permitido fazê-lo com a alegria das correrias e das lutas por um pião, por um berlinde ou por um golo em balizas virtuais. E fomos sendo agraciados, habituados ao respeito explícito, fomos reconhecendo o nosso retrato nos espelhos dos cartões que nos conferem um não-direito à identidade, como fomos de forma dissimulada tentando evadirmo-nos do cárcere negando a inocência, as memórias da inocência, aprisionados entretanto na nossa própria máscara. Quando ousamos, pervertendo o sentido da obediência, afrontando o constrangimento do saber a que retiramos o véu da sua utilidade, ignorando as campainhas na agenda da autenticidade das nossas decisões, surge como inevitabilidade um compromisso com os filhos que pela nossa mão, com a impressão digital catalogada nesse legado por que é improvável nos perdoem ou possam vir a compreender, um compromisso com aqueles que por essa nossa mão levamos agora à escola. E desviamos o olhar quando eles transpõem a mesma porta, na súplica que a nossa arca conserva, que se adensa, confinados ao singular acto de liberdade de perscrutar o céu.
Na minha cela, enquanto redijo ao sabor das letras que aprendi, o exercício da instrução é efígie transparente, a ele devo a cela e a consciência do cárcere que me une a quantos jogam no recreio sob o mesmo céu sem os mestres que a lei lhes nega e entre os toques das campainhas que nos perseguem os sonhos e os gritos que povoam noites de vigília. E sei de alguns que vestem de branco, outra vez de branco, camisas-de-força como prémio por terem soçobrado ao imaginarem que os filhos não têm uma mão protectora no átrio frio do sarcasmo cujos motivos ainda não vislumbram.
Mas a imaginação, que nos meandros da escola conquistava a recôndita e mais sublime liberdade, transforma-se na ilusão de que estas paredes perecerão sob a vontade dos homens, antes mesmo de que seja necessário decretar o seu epitáfio, e a lucidez, de que a maior sorte nos libertou na infância, logra alcançar além das grades, e entender que o uniforme de trabalho quando vestido já foi ignorado pela superioridade do saber, que as campainhas são ouvidas só pelos surdos, que nos agrilhoamos no silêncio para prejuízo dos que nada partilham connosco nem são dignos de que as palavras lhes sejam dirigidas. Talvez assim se devolva ao universo dos nossos pequenos limites o lugar que lhes é devido sob a luz da fraternidade e da dignidade. Talvez assim a razão não ocupe o papel que se reserva ao sentimento, nem as emoções turvem o bom-senso.
As experiências que decorrem da regulação das relações sociais, as fronteiras do quotidiano, a função social do trabalho colectivo, a importância dos conhecimentos que as academias veiculam, o seu debate, são um ponto de partida para que os homens se possam universalmente assumir iguais na sua complexidade, respeitados na noção particular de que são intrinsecamente universais, para que todos compreendam a efemeridade das dúvidas e a intemporalidade dos mundos que venham a construir pela mão com que conduzem no devir.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 152
Ano 15, Janeiro 2006

Autoria:

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

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